quarta-feira, 30 de julho de 2008

Excesso, latifúndio, dispersão

Depois do desânimo de bibliômano da semana passada, dois encontros me fizeram voltar a gostar de ler: um com a Andrea, que voltou de viagem prolongando experiências; outro com o Pierre Bayard, que chegou pelos correios dizendo "ih, relaxa, mona". Aí, sobre excessos e tal, eu fiquei pensando...

E se "as grandes obras do século XX" foram escritas justamente para não serem lidas? O que os literatos, cheios de si, gabam como uma recusa da poesia ao mundo burguês, automatizado, materialista, consumista, blablablá, pode ser uma bomba de sentido oposto: uma recusa da poesia às pretensões totalizantes, lucrativas (talvez não de capital financeiro, mas sem dúvida de capital simbólico), redutoras e pedantes desses mesmos literatos. Que direcionam o texto pelos seus interesses e dão cabo de todo o resto.

O Grande sertão: veredas, por exemplo, é um texto de perdas e descaminhos, do impreciso. E a crítica literária (que é um gênero textual histórico, não posso abrir mão disso) reconhece isso ao mesmo tempo em que tece interpretações e ergue monumentos para um livro cuja leitura é porosa, areia, impegável. O Grande sertão recusa reducionismos. E - vejam-se os congressos e teses que se multiplicam em mônadas - falha nessa recusa. Assim como todas as outras "grandes obras" que, na verdade, permitem apenas percursos precários de leitura.

Nem no conjunto essa recusa é bem sucedida. Poderia ser? É humanamente impossível que alguém leia com dedicação punhetórea e minúcia todos os catataus editoriais que o século XX deixou, mas ainda assim os literatos conseguem domesticar nomes e idéias por aquilo que Pierre Bayard chama de "faculdades de orientação" numa "visão de conjunto" do que é entendido como alta cultura. Ou seja, o manejo do cânone - que é aquilo que a gente chama, não inocentemente, de "literatura".

... Mas que besteira falar em "recusa da poesia". Não é ela também que engendra a biblioteca como teatro?

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Apatia

O excesso de versos

insônia, ruminação

arruína?

As citações, as retomadas, as investidas

Tudo em torno da engrenagem burocrática de escrever

e de prazer

?


Temendo deste agosto o fogo e o vento
Caminho junto às cercas, cuidadosa
Na tarde de queimadas, tarde cega.
Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.
E ali reencontro o louco:

- Temendo os teus limites, Samsara esvaecida?
Por que não deixas o fogo onividente
Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder
Casando o Onisciente à tua vida?

"

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Escrita / Travesti (II)

3


"Dia dos namorados" é um conto de Rubem Fonseca publicado originalmente em Feliz ano novo (1975) e incluído por Luiz Ruffato na antologia Entre nós: contos sobre homossexualidade, publicada pela Língua Geral no ano passado. Não é exatamente um "conto sobre homossexualidade"; talvez, um conto de um tempo em que travestismo e homossexualidade eram quase sinônimos, quando ainda não havia a figura friendly e bem-aceita do gay nem a apropriação das tecnologias médicas de escultura corporal com que as travestis se produzem hoje.

Viveca é uma menina linda de dezesseis anos que, apesar de estar parada no calçadão de Ipanema, não faz o "tipo piranha de praia". J.J. Santos, o ricaço, fica fascinado e pára sua Mercedes tempo o bastante para que a garota entre no carro e eles sigam em direção ao quarto espelhado da suíte presidencial de um hotel na Barra da Tijuca.

J.J. Santos tomou um gole, tirou o paletó, e disse, vou ao banheiro, fique à vontade.

Quando saiu do banheiro a garota estava nua, deitada na cama, de bruços. J.J. Santos tirou a roupa e deitou-se ao lado dela, fazendo-lhe carinhos, olhando-se nos espelhos. Então a garota virou-se de barriga para cima, um sorriso nos lábios.

Não era uma garota. Era um homem, o pênis se refletindo, ameaçadoramente rijo, nos inúmeros espelhos.


Como no filme Traídos pelo desejo, o surgimento do pênis muda radicalmente o estatuto da personagem de "garota" para "homem". Viveca, até então fêmea-passiva, torna-se não um garoto, o que ainda poderia denotar delicadeza e submissão, mas, "ameaçadoramente", um "homem". Inifinitamente homem, pois o pênis (mais metáfora do que metonímia) se reflete "nos inúmeros espelhos", cercando J.J. como flechas por todos os lados. E, como não poderia deixar de ser, Viveca-homem é o perigo de quaisquer masculinidades confrontadas no espaço íntimo.

O quê? O quê? Está me chamando de ladrão? Eu não sou ladrão! gritou Viveca, levantando-se da cama. Subitamente uma gilete apareceu em sua mão. Me chamando de ladrão! Num gesto rápido Viveca deu o primeiro golpe no próprio braço e um fio de sangue borbulhou na pele.

J.J., estarrecido, fez um gesto de nojo e medo.

Sou viado sim, sou VI-IIII-ADO! o grito de Viveca parecia que ia romper todos os espelhos e lustres.

Não faça isso, suplicou J.J., apavorado.


Viveca, antes uma "garota tão bonita", metamorfoseia-se num corpo estranho e barulhento que causa pavor e nojo em J.J. A situação será resolvida por Mandrake, o narrador do conto que, contratado pelo advogado de J.J., levará Viveca até uma delegacia, onde descobrirão que ela aplica golpes para tirar dinheiro dos clientes, e então ela será presa e silenciada.

Viveca pertence a uma extensa galeria de personagens cuja corrupção moral está intrinsecamente ligada à corrupção de seu corpo e das funções sexuais que esse corpo deveria ter. É uma personagem má, porque perturbada, que tem um corpo mau, porque perturbado. Ainda assim, a escrita de Rubem Fonseca pouco se perturba: após a revelação do pênis, toda a gramática do conto passa Viveca para o masculino, inclusive quando as frases são atribuídas à personagem. No plano da escrita, a identidade de gênero de Viveca está muito bem resolvida - e o resto não passa de fato pitoresco.

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quarta-feira, 16 de julho de 2008

Escrita / Travesti (I)

para a Jana

1


O movimento social de travestis tem investido cada vez mais numa legitimação de "travesti" como identidade, e não como estado. Isso quer dizer que, segundo as travestis (a maioria delas, pelo menos), "travesti" não é o-homem-que-se-veste-de-mulher, mas uma pessoa que não se identifica nem como homem, nem como mulher, e sim como: travesti.

Por um lado, isso pode parecer estar na contramão das atuais discussões sobre identidade de gênero, em que cada vez mais se entende (graças ao feminismo, desde Simone de Beauvoir) que ninguém é/nasce "homem" ou "mulher": tornamo-nos "homem" ou "mulher" por uma série de mecanismos simbólicos socialmente legitimados. Então, se o sexo de uma pessoa é sempre artifício, de que vale esse engajamento na criação de um "terceiro sexo", quando poderíamos nos engajar na destruição de "o sexo" pela consideração da pessoa como além-gênero, como supra-gênero, talvez como todo-gênero?

Mas é justamente nesse movimento de historicização das identidades de gênero que as travestis se inscrevem. Lembro de Janaína Lima, uma amiga militante de Campinas (SP), dizendo: "se a identidade é historicamente construída, então nós, travestis, estamos construindo a nossa".


2


Ao dizer isso, numa mesa redonda em frente a um auditório lotado, Janaína estava tornando-se sujeita do discurso, e não objeto, como eu faço aqui neste texto. Quando eu falo sobre travestis, falo de um lugar em que essa experiência não se dá. Minha escrita não tem silicone, embora eu possa escrever sobre silicone.

Não é problema, de modo algum, que um homem escreva uma travesti. Mas é um problema enorme que travestis não se escrevam nem escrevam um homem. Porque o texto não emana de um centro neutro e anterior a tudo, e sim de sujeitxs historicamente situadxs, com experiências historicamente limitadas - absolutamente importantes, mas irremediavelmente limitadas.

Assim como, se Carolina Maria de Jesus jamais tivesse escrito Quarto de despejo, minha única referência da fome seriam as elocubrações digestivas que fazem meus pares da classe média.


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quarta-feira, 9 de julho de 2008

De todo esse mundo

Imagino Carolina acordada às quatro da manhã, com a luz de uma lâmpada fraca e solta acesa em seu escritório improvisado, entre as tábuas podres de madeira, a pilha de cadernos ao lado e mais um entre os dedos, as palavras sendo cavadas para fora da folha, as três crianças dormindo com fome ao lado, ela com fome, ela escrevendo.

A fome é uma coisa da qual sempre estive muito longe. De modo que é fácil, tão fácil ter uma opinião sobre ela. Assim como é fácil falar, sem vontade de ênfase, a palavra: fome. Uma palavra gorda, que enche a boca, que exige movimento de mastigação para ser pronunciada.

Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, é o encontro da fome com a poesia. Mas não de um jeito canalha. Canalhas somos nós. Carolina é poeta.



27 de maio

[...] Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu deixei e fui para o deposito. Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recibi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estomago reclamava e torturava-me.

... Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.

... A comida no estomago é como o combustivel nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetaculo. E haverá espetaculo mais lindo do que ter o que comer?. Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.


A fome amarela o mundo. É isso o que Carolina conta. E comer é o espetáculo mais lindo. Isso não é simbólico (não tem nada a ver com antropofagia!) e é tão difícil compreender a falta no estômago que eu nunca tive.

Impressiona nos diários de Carolina o relato da miséria, que ela faz, revoltada contra tudo, impiedosa, citando nomes de políticos eleitoreiros, mas também dos vizinhos violentos. "Acho que se eu estivesse num campo de batalha, não ia sobrar ninguém com vida", escreve ela no dia 20 de junho de 1958.



E a irrupção da beleza. Quarto de despejo não é um relato chapado. Não é denuncismo. É a história de uma vida. Com a fome no corpo, Carolina ama um cigano de rosto bonito com quem goza e se decepciona ("O nome do cigano é Raimundo. (...) Êle parece o Castro Alves. Suas sobrancelhas unem-se"). E registra, no dia 25 de julho, um sublime sutil: "Achei o dia bonito e alegre. Fui catando papel".

Anda pela cidade, pára nas bancas de jornal para conversar sobre política, registra as pichações dos estudantes, conversa sobre literatura - sempre catando papel. "Fui na sapataria retirar os papeis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Êle disse-me que não é aconselhável escrever a realidade".

E conta, diversas vezes, sobre a impossibilidade de publicar...

16 de junho

[...] Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Êles respondia-me:

- É pena você ser preta.

Esquecendo êles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça êle já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.


sexta-feira, 4 de julho de 2008

Clarice Lispector, difícil de pegar


Quando eu li A via crucis do corpo, depois de já ter passado por A paixão segundo G.H., Laços de família, A hora da estrela e Perto do coração selvagem ao menos duas vezes cada, e de ter ouvido tudo quanto é opinião comum sobre "a Clarice" (o prenome íntimo que as pessoas usam tanto quanto a menção ao "olhar dela"), e numa época em que estava fortemente envolvido pelos textos de Hilda Hilst, sobretudo por sua "trilogia obscena", a primeira coisa que lembro de ter pensado, com essa mania de um pensar distanciado com que a faculdade de Letras nos impregna, mas também com raiva por perceber o quanto esse "pensar distanciado" é simplificador e abominável, eticamente falando, por domesticar textos de elevado potencial bélico, a primeira coisa que lembro de ter pensado foi: "


Clarice Lispector foi uma escritora. Não no sentido profissional da palavra. Foi escritora porque escreveu, só. Sem amarras, sem escolas, absolutamente texto. Escreveu por diversos gêneros, para diversos públicos, em diversos meios - e fiquei muito aborrecido e emburrecido com os comentários acerca do "intimismo", ou do "engajamento", ou do "feminino" e o escambau. Por que recusamos ser proféticas? E por que gostamos tanto d'"a Clarice" e prestamos tão pouca atenção no que seus textos nos esfregam na cara? Pornografia, denúncia social, auto-ajuda, filosofia, literatura, biografia. Crítica e consumismo. Sem vergonhas. Il mondo è bello perché è vario - e o trabalho de Clarice Lispector também. Intimistas são as opiniões da maioria de seus leitores, acostumados a se apropriar da "literatura" na privatização prática (hedonista ou utilitarista) das nossas expectativas mesquinhas e egocentradas.

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As fotos são da Júlia Hansen e podem ser vistas, mais outras, aqui

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Música simples

As melhores leituras, eu acho, são aquelas em que o texto propõe um ritmo - e você o abraça, enlaçam-se as cinturas e começa-se a dançar. Eu não danço, nunca tive jeito pra isso, mas já ouvi falar que o legal da dança a dois é que, por mais que haja passos pré-definidos e papéis bem demarcados, os movimentos sempre acontecem como um diálogo, como em teatro, organicidade.

Roçando um ritmo. A leitura é que torna o texto orgânico, vegetal. Uma leitura é uma vida. Própria e presente. E quando há consonância e acertos, dança-se bem, lê-se bem.

Terminei de ler o último livro de Denilson Lopes, A delicadeza: estética, experiência e paisagens, sentado na rede da sala, sozinho na meia-luz da casa, acompanhado apenas pelo barulho dos carros na rua - que às vezes parece, coisa mais estranha, como o barulho do mar - o qual, segundo Denilson, "é preciso desatenção para ouvir. Som repetido, quase imperceptível, quase invisível. É preciso tempo. É preciso se deixar. É preciso não ter medo".

Deixo, então, por instantes, de me sentir desconfortável com o súbito conforto de que gozo numa noite de terça, deitado na rede de um apartamento amplo e quente, longe do frio e da tortura que açoitam lá fora pessoas que eu não sou. Deixo, deixo. Não na recusa da alteridade, não recusando os outros. Mas recusando a mim mesmo, porque o desconforto também pode ser muito agradável e isso, agora, não está. Non c'entra. Tento.




Nem tudo o que Denilson escreve me agrada; muito, não alcanço; outro tanto, não concordo. Mas quero - e sobretudo danço, junto com ele, pelas páginas. Tento sentir a beleza, o leve e o banal enquanto agarro o livro com ambas as mãos para conter o sacolejo rude do ônibus. Tento imaginar, ao ver retalhos de travestis assassinadas, como engendrar a delicadeza - e como suportá-la.

E por mais que não saiba ainda se isso me faz algum sentido, escolho conviver com esse livro - e compartilhá-lo, mas sem pressa. Para dançar é necessário respeitar o parceiro, o compasso da sua caminhada, a hesitação de seus movimentos, para que ambos possam, juntos, decidir o próximo passo.

Deitado na rede, folheio o livro que fala de paisagens, de lounge, bossa nova e sutilezas com a curiosidade de quem já conhece, mas duvida; de quem duvida, mas acolhe. E admite, como experimento de um baile, dançar em outra velocidade, mesmo que só por um momento.
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