segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Coração das trevas, de Joseph Conrad (2)

Mas o narrador que reivindica o livro não é Marlow. É um companheiro de viagem de Marlow, um dos que estão ouvindo essa história.

Esse narrador primeiro do livro ocupa apenas alguns poucos parágrafos em mais de cem páginas de texto. E suas intervenções não são propriamente literárias; antes, elas situam a narrativa de Marlow para que ela não seja direta: não é uma voz que narra ao leitor, mas é um texto em que se transcreve uma voz que narrou, não ao leitor, mas àquele que escreveu o texto.

Essa é uma mediação que reproduz outra mediação, que vamos descobrindo ao longo da leitura: a história de Marlow, na verdade, não é dele, mas a de Kurtz, o lendário homem que será resgatado na expedição que Marlow comanda até um ponto longínquo do Congo Belga, misterioso - e perigoso - para os europeus.

Apesar de Kurtz aparecer apenas no final da narrativa de Marlow, é em direção a ele que a história caminha o tempo todo. E, apesar de ele não protagonizar nenhuma das grandes aventuras dessa história, como os perigos que a expedição de Marlow enfrenta, foi Kurz quem viveu de fato a grande aventura, maior de todas.

Tão grande que é só dele. Tão dele que Marlow não a conhece, muito menos o homem que escreve a história de Marlow, muito menos o leitor. Não conhecemos os fatos, quero dizer.

A grande aventura pessoal / o inominável / isso, no entanto, partilhamos. Coração das trevas faz parte de um mundo (o nosso mundo? "nosso" de quem?) em que, pralém dos encontrões diários, o que as pessoas realmente têm em comum é a vivência indizível, é o lacônico do cotidiano. Comunhão frustrada em que, comunicando-nos, a vida pode ser apenas insinuada em processos de desregramento do discurso convencional, o que é exercitado, por exemplo, na psicanálise e na poesia. Em linhas gerais, desde o romantismo a dicção do poeta vem sendo encarada, cada vez mais, como algo pessoal, intransferível e independente das convenções de tema/gênero/público que pautaram toda a retórica poética de Aristóteles até Gregório de Matos, por assim dizer. Analogamente, hoje cada pessoa é encarada como portadora de uma dicção própria para deixar de dizer aquilo que viveu sozinha: o trauma. Todos temos traumas, segundo se diz, e o nascimento é o primeiro trauma, pelo qual todos passam. O trauma, grosseiramente definido, é uma carga de estímulos simultâneos e tão grandes que o nosso corpo não tem condições de abarcar e que, por isso, se torna uma memória intocada e dolorosa, já que não pode ser moldada pela onipresente e necessária fala-de-si. Os vários modos de clínica terapêutica costumam ser tentativas de transformar essas experiências indizíveis em traumas discursivamente possíveis.

No momento em que Marlow conta a seus ouvintes o que Kurtz apenas entredisse, o entredizer do próprio Marlow entra em cena, reverberando no entredizer do narrador anônimo de Coração das trevas, que se encontrará com o entredizer do leitor ele mesmo (desde que esse leitor seja especial o bastante para ter dores íntimas indizíveis). Desse modo, a clássica fala de Kurtz ("O horror, o horror") é tomada por nós como o arquétipo (um arquétipo não-narrativo e não-personificado, logicamente) da experiência moderna.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Coração das trevas, de Joseph Conrad (1)

Na teoria de Walter Benjamin, há dois protótipos de narrador: um é o velho, aquele que viajou grandes distâncias no tempo; outro, o marinheiro, aquele que viajou grandes distâncias no espaço.

*

Toda história nasce de uma viagem.

*

O principal narrador de Coração das trevas é Marlow, um velho marinheiro que, a bordo de um navio impedido de continuar a navegação por condições naturais (mudança da maré, calmaria do vento), começa a contar uma história de sua vida aos seus companheiros de viagem, enquanto todos esperam as condições favoráveis para que o iole prossiga.

*

Para nascer, toda história precisa de uma espera.

*

A espera, definida no tempo, é um momento de iminência, de suspensão do presente e formação de um vácuo preparatório do porvir. É nessa espera que Marlow começa a narrar, mas sua narrativa não é, de modo algum, essa espera. A espera da narrativa é outra: definida no espaço, ela consiste na disposição corporal daquele que recebe a narrativa.

O leitor/ouvinte de uma narrativa tem de criar algum vácuo em si, nos movimentos do seu corpo, para poder receber a história que lhe é contada. É a espera da atenção, tal como a define Simone Weil: um olhar e não um apego.

*

A história é uma força que preenche.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Escrever. Escrever para

Numa mesa cheia de jovens escritores, fez-se a pergunta: por que você escreve? E seguiram-se respostas exaltadas e passionais, típicas de jovens: eu escrevo para lembrar, eu escrevo para dizer, eu escrevo para mudar, eu escrevo para me vingar.

Cuti, o único escritor maduro da mesa, com a pontualidade característica de quem mastiga o tempo, deu a resposta mais óbvia e, na minha opinião, a mais acertada: eu escrevo para ser lido.

É tudo o que um leitor atento deseja ouvir. A menos que esse leitor se identifique a tal ponto com os textos que lê que creia que a dor contida neles seja a sua própria dor, e não dor fingida, de ninguém e de todo mundo, que é dor sobre a dor que nós deveras sentimos.

A escrita para ser lida refaz o caminho ancestral da palavra, água que banha duas margens e que segue.

***

Não se trata de empatia. Nem de agrado. É sim uma comunhão que transcende o imediato. Quem olhar para o céu de uma noite clara de luar verá a lua. E quem não puder ver pode saber que é a lua se alguém, ao seu lado, lhe contar. Simples, bem simples.

***

Uma das pessoas que eu mais admiro é Susan Sontag. Seus ensaios têm a clarividência de um primeiro conhecimento, límpido aberto e ávido pelo avanço. Sontag é uma pensadora estadunidense por completo: afirma a liberdade de escolha, a diversão, o orgulho da razão e a vontade messiânica e evangelista por um mundo melhor. Todas qualidades que um americano intelectualizado, seja qual for o seu país e idioma, gosta de vislumbrar de um algum modo. Pois, ainda que longinquamente, os Estados Unidos são a grande promessa do mundo.

Sontag foi uma americana disposta a cumprir essa promessa. Em meio à Guerra do Vietnã, ela viajou para o país que os EUA bombardeavam a fim de entendê-lo e assim humanizá-lo aos olhos de seus compatriotas, sendo uma missionária da justiça em toda parte, até em casa. Em setembro de 2001, foi talvez a única voz de peso em Nova Iorque a destoar do coro neobárbaro que se unanimizava após os ataques ao World Trade Center, negando radicalmente a retórica bélica e xenófoba que se instaurava sem, contudo, inocentar a barbárie do outro. Não justificar a barbárie é um traço comum em seus ensaios.

Era uma pensadora militante, podemos dizer. Bem no rastro do que se entende por militância hoje, surgido com os modos de organização civil que apareceram nos anos 60: um posicionamento político incessante, que abrange todas as esferas da vida pública e privada e que advoga pela factibilidade da utopia do bem comum.

***

Mas o que eu conheço de Susan Sontag são só alguns livros de ensaios. Ela também escreveu romances, contos e peças de teatro, gêneros fictícios e fingidores. Sobre isso, a pensadora se pronunciou ao receber um prêmio em Frankfurt, na Alemanha:
A escritora que há em mim desconfia da boa cidadã, da "embaixatriz intelectual", da ativista dos direitos humanos - papeis mencionados na apresentação deste prêmio, por mais que eu me empenhe neles. A escritora é mais cética, tem mais dúvidas a respeito de si mesma, do que a pessoa que tenta fazer (e apoiar) o que é certo.

Uma das tarefas da literatura é questionar e construir contra-afirmações às crenças dominantes. E mesmo quando a arte não é de oposição, as artes gravitam rumo à contrariedade. Literatura é diálogo; receptividade (...) [e] escritores são criadores, não só transmissores, de mitos. A literatura oferece não só mitos, mas contramitos, assim como a vida oferece contra-experiências - experiências que perturbam aquilo que pensávamos pensar, sentir ou acreditar.

(Susan Sontag, no livro Ao mesmo tempo)

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

pela estrada do sítio

Parece que desde o acontecimento concretista, o que muito se dá valor é pra poesia culta - a personagem-poeta cultivando erudição, Haroldo de Campos de boinas com seu séquito / e os séquitos se sequitando. Em modos de produção de leitura que dragam tudo transformando tudo em diamante e make-it-new, de modo que o fazer anárquico de Paulo Leminski, o carcomido de Manuel Bandeira, o drenado de Orides Fontela, tudo se nivela à auto-satisfação do achievement (a conseguição do sucesso) poético / o poético um fenômeno que emana de si mesmo como uma luz abstrata que nada ilumina e não fabrica sombras. De repente estamos parnasianos?

A poesia, assim exercida, que exercício de avarezas. Pois avaro é aquele que delega ao mínimo a potência do máximo - e "ao mínimo", aqui, me refiro à técnica. A técnica é um acidente do Poeta. O Bardo é aquele que carrega, é o que anuncia e é o correnteza.

É lógico que o fazer carece lá da sua fita métrica e nível, mas engana-se quem acha que os melhores momentos de João Cabral ou Haroldo de Campos são grandes feitos da engenharia assim como deve ser a ponte Rio-Niterói ou qualquer outra grande estrutura de aço.

Ainda que João Cabral seja o grande poeta da engenharia (e um grande engenheiro da poesia), seus poemas não estão em débito com técnica alguma, nem são sustentados por aquelas colunas fortes para as quais basta um Sansão inspirado por deus para derrubá-las. Um poema como "O engenheiro" é as colunas tanto quanto é o herói que as destrói, e os fariseus que caem pra morte, o céu indiferente no Japão, a narrativa e a contranarrativa e a própria inspiração divina.

O POEMA

A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.

Que monstros existem
nadando no poço
negro e fecundo?

Que outros deslizam
largando o carvão
de seus ossos?

Como o ser vivo
que é um verso,
um organismo

com sangue e sopro,
pode brotar
de germes mortos?

*

O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.

É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho;

é de outras vezes
de carta aérea,
leve de núvem.

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?

(João Cabral de Melo Neto no livro O engenheiro)


O poema: um edifício / crescendo de suas forças simples. Como ser vivo de sangue e sopro, mas essencialmente inorgânico, o poema me interessa enquanto o ato de amor que ele é.

Calma lá: o que é o amor? Eros é a força primeira de união, no princípio uma molécula disse "sim" a outra molécula e aí se fez: o princípio. É o amor que move o Sol e as outras estrelas.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Entrevista com Santiago Nazarian

"A biografia de um escritor é sua obra", corre por aí. Italo Calvino mentia em todas as entrevistas que dava, cada uma uma mentira diferente. Rubem Fonseca não dá entrevistas e não gosta de ser fotografado, quase que nem o J.D. Salinger, que no entanto é mais radical e chega a processar judicialmente quem fala dele sem permissão. Clarice Lispector entrevistou muitas pessoas, mas ela própria concedeu apenas uma ou outra entrevista. E dizem que, quando ela e Lígia Fagundes Telles estavam em algum evento e ela percebia alguém querendo fotografá-las, Clarice puxava Lígia de canto e dizia: faça cara de má, nós vamos ser fotografadas. Era a pose do escritor.

Eu, como leitor, poucas vezes me interessei a sério pelos autores. Quando comecei a ler Caio Fernando Abreu, aos 13 anos, eu quis muito ser amigo dele. Aí descobri que ele tinha morrido no ano anterior e fiquei triste. Depois, no final da adolescência, me deu um frisson de dois dias pensar que a Hilda Hilst, que tinha escrito aqueles livros que estavam me rasgando em mil pedaços, morava tão perto e eu não ia nem falar "obrigado" pra ela. Decidi com uma amiga que iríamos conhecê-la e a Hilda morreu no final daquela semana.

É uma coisa que acontece, os poetas mortos. Mas agora eu quero dizer que outra coisa acontece também, que é os poetas estarem vivos. E ter lido um livro do Santiago Nazarian bastou para que eu quisesse saber como ele tinha chegado àquilo - e como tinha passado por aquilo.


***

Santiago acaba de publicar seu quinto romance, O prédio, o tédio e o menino cego. Esse livro parece seguir uma trajetória similar à dos anteriores,* com boa recepção por parte da crítica e do público, coisa pouco comum no nosso mercado editorial. Agora ele fala de zumbis e da difícil passagem da infância para a adolescência, seguindo uma decisão corajosa de não deixar nada de fora e de não reproduzir as fórmulas prontas da boa literatura.

Abaixo, ele responde a cinco perguntas que lhe fiz por email.


***

Pergunta: Como você começou a escrever e quando foi que decidiu se autodenominar escritor? Você poderia traçar um percurso entre o surgimento da vontade e a opção mais formal (por assim dizer) pela profissão de escritor?

Resposta: Eu venho de uma família de artistas, meu pai é artista plástico, tenho irmãos atores, e minha mãe sempre trabalhou com livros, em livrarias, na Biblioteca José Mindlin. Foi um percurso natural – porque sempre tive livros em casa, sempre gostei de ler. Até experimentei outras formas de arte – estudei piano, toquei teclado numa banda, fiz curtas-metragens na faculdade – mas escolhi a literatura pela independência, pela possibilidade de trabalhar sozinho, e fazer do meu jeito. Sempre fui muito individualista, então a literatura é a opção ideal. Comecei a escrever mais a sério, tentando formar livros, pelo final da adolescência, 17, 18... Era muito ruim, mas acho que tinha personalidade. Foi bom porque nunca fui travado para isso, escrevia muito, romances inteiros, horríveis, e passava para o próximo, aos poucos eles foram melhorando. Com 22 escrevi “A Morte Sem Nome”, que foi o segundo que publiquei, com 26. “Olívio” eu escrevi com uns 23, mas publiquei primeiro, com 25. Eu nunca achei que poderia ser escritor, como uma profissão, apenas gostava de escrever, e acho que estaria fazendo isso ainda hoje, mesmo que não tivesse publicado. O primeiro livro (“Olívio”) acabou saindo meio por acaso, porque tinha um concurso para romances inéditos (o Prêmio Fundação Conrado Wessel) e eu mandei, para ter uma certa avaliação. Ganhei o Prêmio, o livro saiu, daí me esforcei para que isso significasse alguma coisa, para que não morresse com a publicação de um livro, sem repercussão e sem novas possibilidades.


P: Numa entrevista de 2003 à Heloísa Buarque de Hollanda, o Waly Salomão diz o seguinte:
HBH: Como nosso defensor oficial da leitura [Waly havia sido nomeado secretário nacional do Livro e da Leitura], além de gostar de analfabetos você não tem medo da mídia?

WALY: De jeito nenhum. Foi o programa do Jô que me aproximou do Afroreggae. Por isso é que poeta não querer ir para arena pública está errado. Poeta criticar a coisa midiática é uma coisa da Europa civilizada pós-Hitler, mas que aqui não tem razão de ser. O poeta, o escritor tem que ter uma arena pública, tem que ter um modo de falar não só para o Departamento de Letras, não pode fazer uma poesia prêt-à-porter que agrade ao ouvido do professor. Ele tem obrigação de tentar alargar o seu escopo.
O poeta tem que ter uma arena pública? Tenho a impressão de que, nas suas entrevistas nos programas do Jô Soares e da Adriane Galisteu, os entrevistadores deram mais enfoque ao lado anedótico da sua vida do que aos seus textos - e, pelo que eu vejo, isso tende a acontecer com qualquer escritor que apareça fora da mídia especializada em literatura e artes. Isso te incomoda ou incomodou em algum momento? E, quando você aparece como "celebridade" nessas arenas públicas, qual o lugar que fica para o seu trabalho?

R: Acho que há um certo desperdício, sim... Essas entrevistas poderiam aproveitar mais o entrevistado, se aprofundar em questões literárias, e ainda assim serem divertidas. Mas é um risco, claro, quando você se aprofunda, pode estar perdendo público - perdendo audiência, no caso dos programas de TV. De qualquer forma, é inegável que programas como o do Jô... bem, principalmente o Programa do Jô, tenha aumentado meu público. Muita gente viu e achou engraçado, me achou um personagem interessante, começou a seguir meu blog. Alguns deles compraram meu livro – pode ter sido uma porcentagem pequena, mas de qualquer forma houve esse aumento no número de leitores. Então concordo com o Wally, é fundamental aproveitar qualquer arena que esteja disponível, na qual se possa fisgar novos leitores. Não me importa que um leitor compre meu livro porque me achou bonitinho... Aliás, pode ser mais interessante que um leitor compre meu livro porque me achou bonitinho, se é uma pessoa que não está acostumada a ler, e passa a ser. Me cansa um pouco falar da minha vida, mas me cansa também responder as mesmas perguntas sobre meus livros. É colocar no piloto automático e fazer, porque sempre terá gente que estará vendo pela primeira vez, e que vai se interessar.... Imagine quantas vezes já respondi a “por que você resolveu ser escritor”?


P: O seu primeiro romance, Olívio, foi publicado em 2003, e agora você acaba de lançar seu quinto livro, O tédio, o prédio e o menino cego. De que modo você acha que as críticas literárias e a sua presença na mídia afetaram, ao longo desses anos, o seu trabalho de criação, composição e escrita de romances? (se é que você acha isso:)

R: Pode parecer contraditório, mas a exposição me tornou mais livre. Veja, antes eu não tinha editora, eu não tinha público, e eu tinha certa vontade de ser aceito, de ser lido, tinha medo da crítica, da classe literária, sim, ou de nem conseguir publicar. Daí publiquei um livro, dois livros... Eu percebo claramente que meus livros foram ficando cada vez mais com minha cara. Hoje em dia vejo “Olívio”... não tenho vergonha nem renego, mas não é um livro nada pessoal, é um livro muito parecido com muita coisa que existe aí. Sou eu tocando num universo que é comum para muita gente. Daí eu lanço meu quarto, um livro narrado por um jacaré de esgoto, por uma editora tradicional, e tenho ótima aceitação – é meu livro que mais vendeu, inclusive. Obviamente isso me deixa cada vez mais confiante e livre para fazer do meu modo. Também é um processo natural de amadurecimento – “torna-te quem tu és”. Você vai consolidando seu próprio estilo. Mas claro que, ainda hoje, tenho certo receio, sempre dou esse passo além (que às vezes é um passo largo) e penso: “Como será que o público receberá isso? Será que alguém vai entender o que eu quis dizer?” Até agora, o saldo tem sido bem positivo.


P: Lembro de ler o Caio Fernando Abreu, numa crônica, acho, lamentando o fato de que "o escritor no Brasil" tem de conciliar o ganha-pão, muitas vezes extenuante, com a escrita. Nesse texto, Caio (que estava lançando Os dragões não conhecem o paraíso, se não me engano) dizia que adotara o seguinte método para escrever: trabalhava loucamente durante um tempo, até juntar uma grana razoável, e depois ficava um período de dois anos só escrevendo - e eventualmente contraindo dívidas.

(Um livro que eu acho que coloca esse lance na mesa é A hora da estrela, com o autor Rodrigo S.M. se referindo o tempo todo às suas contas a pagar e ao conforto em que escreve, uma espécie de burguês-pária).

Como você encara a relação entre as condições materiais da sua escrita e o resultado final dela, que são os romances e outros textos publicados?

R: Todos meus trabalhos giram em torno da escrita. E não lamento ter de fazer esses trabalhos para me sustentar. Eu aprendo muito como tradutor, por exemplo, acrescenta muito a mim como escritor. O mesmo como parecerista/resenhista. Para mim é um privilégio receber para ler um livro e dar minha opinião. Então agradeço conseguir viver disso, não me sinto prostituído, pelo contrário. Às vezes há trabalho demais, e falta tempo para escrever minha própria literatura, ou ler o que quero, mas sei que esses trabalhos vão me fortalecer como escritor, além de pagar minhas contas.


P: Como escritor, qual a sua ambição de vida? :)

R: Ter uma carreira sólida no exterior. Não é pouco.


***

* Livros publicados por Nazarian

Olívio (Ed. Talento, 2003)
A morte sem nome (Ed. Planeta, 2004)
Feriado de mim mesmo (Ed. Planeta, 2005)
Mastigando humanos: um romance psicodélico (Ed. Nova Fronteira, 2006)
O prédio, o tédio e o menino cego (Ed. Record, 2009)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A paixão dos suicidas que se matam sem explicação


De um romance a gente espera começo, meio e fim. Que o romance trata de vidas exemplares, seja para você se identificar com elas ou rejeitá-las, total ou parcialmente. Mas um romance tem necessariamente personagens e as personagens são necessariamente antropomiméticas, quero dizer, à imagem e semelhança do Criador. À diferença da poesia, que é o discurso dos discursos e tantas vezes compartilha, com o leitor, apenas o eu pressuposto de qualquer enunciação, como quando a gente canta uma música imitando a Madonna ou a Ângela Maria. Poesia é coisa de xamã, de incorporar a voz do outro, enquanto o romance encena o teatro do mundo e há exterioridade mesmo na catarse. Não é?

***

Estou lendo A morte sem nome, do Santiago Nazarian. Nesse, a personagem principal, que emite a voz narradora do livro, é uma personagem que se sabe fala / ou melhor, é uma personagem que se projeta fala, que se fala apenas fala, feita só de texto.

Se a personagem Lorena não é uma pessoa-Lorena, ela não precisa obedecer às leis da física e à lógica do cotidiano. Lorena é uma suicida serial, que se mata a cada capítulo. O texto, inorgânico, torna possível a morte na vida - e as várias mortes várias vidas no seu encadeamento de palavras se lançam para a existência.

Do mesmo modo Letícia se lança para fora das janelas, para debaixo da água da banheira, para fora de seu corpo com sangue que encharca cinco andares de um prédio. No mundo da imaginação estruturada pelo texto, morrer é possível. Viver também.

É tudo um jogo. Como no videogame, game over, reset, outro jogo, quantas vidas você tem?


***

Os capítulos se seguem melancólicos. Mas a pena é a da galhofa / ou antes, é a pena da vida que escreve com a tinta da morte. Lorena lembra a performer de Lady Lazarus, o poema de Sylvia Plath:

I have done it again.
One year in every ten
I manage it-----

(...)

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.

I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I've a call.

Eu fiz outra vez. / Um ano em cada dez / Eu consigo---- (...) Morrer / É uma arte, como tudo mais. / Eu faço isso bem demais. // Eu faço tantas vezes que parecem infernais. / Eu faço tantas vezes que parecem reais. / Eu acho que você pode chamar isso de um chamado.


Renasce para remorrer / para renascer feito um Lázaro stripper, mostrar a sua morte e a sua vida.

***

Lorena (ou Letícia), no entanto, faz mais as vezes de Cristo do que de Lázaro. Na sua passionalidade rasgada, lê-la traz cá suas catarses. Talvez pelo reconhecimento das minhas próprias vontades de morte. Mas acho que principalmente pela delícia da ficção que é poder morrer de amor todos os dias / e continuar vivo. E com isso aprender que a morte está com a gente, beijá-la é possível, com ou sem dramalhão. E morrê-la será. Temer a morte é temer a vida, não é?

***

Esse papo me fez lembrar duma crônica do Caio Fernando Abreu. A crônica como gênero, dizem, é diferente do romance: está mais pra comentário da vida do que para simulação desta. Isso se a gente estabelecer limites entre ficção e realidade / e fixarmo-nos neles.

Ela se debruçou sobre mim, tão próxima que consegui ver meu rosto em suas pupilas dilatadas. Era bonita? Pergunta Alguém-Ninguém, a quem tento contar essa história que nem história seria. Fico aflito, tenho sempre tanto medo que me desviem do que estou tentando desesperadamente organizar para dizer; qualquer atalho poderia me perder, e à minha quase história, para todo o sempre. E nada mais triste que histórias abortadas, arrastando correntes, fantasmas inconsoláveis.

Mesmo assim, pacientíssimo, respondi: Não, querido. Era, sim, uma cara de verdade. A de Simone Signoret no final, lembra? A de Irene Papa, Anna Magnani, Fernanda Montenegro. Sem artifícios, crua. Adéli a Prado, Jeane Moreau. Uma cara que se conquista e ousa, que a vida traça, impõe e esculpe fundo em lascas e vincos feitos num mapa em relevo. Anouk Aimée, Marguerite Duras, Vanessa Redgrave. Alguém-Ninguém entusiasma-se com o glamour dessas comparações. Cala-se, olho parado divaga em outras imagens, outras divas. Nem ouve mais, eu continuo a contar.


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