quarta-feira, 28 de outubro de 2009

alheava (3)

um mapa / o conhecimento visual em escala / / / nos antigos mapas da china os monstros marinhos / sendo um mapa a projeção de uma vontade de mundo

*

a representação. mundo das ideias, mundo real, deus fez o homem a sua imagem e semelhança / teleologia do táctil.

*

aqui abaixo, o óbvio: moçambique deixa de fazer parte do mapa português. o alfinete marcamapas cravado no intervalo de uma ideia. o mundo como seria se / um grande globo de países destacáveis.

se o conhecimento é uma reapresentação.

perceber o óbvio?



*





*

(a chave da representação / acho que a percebo, mas não me parece tão interessante. é porque o óbvio não me interessa.?. / as referências imagéticas são um deserto na nossa cabeça / de dunas móveis, areias / um deserto muito vivo. talvez eu queira mais o fogo do súbito do que esse garimpo da percepção. ou, mais: será que esse movimento assim durado cabe no espaço das frases?)

*

delicadeza precisa cuidado

*



*

esta é uma aproximação gradativa do trabalho alheava.

domingo, 25 de outubro de 2009

O que é a poesia?

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A pele perdida

para S.

Quando a menina Isabella Nardoni foi atirada da janela do apartamento pelo pai e pela madrasta, nós nos deliciamos de assunto durante quanto tempo? Entre a queda da menina e a prisão dos assassinos houve todo tipo de manifestação emocional nas casas, nas escolas, nos telejornais e programas de auditório.

*

Qualquer caso policial que envolva violência - de preferência sexual - contra crianças merece destaque no site da Folha de São Paulo.

*

Assim como a infância é uma categoria de compreensão histórica, quero dizer, não universal nem atemporal, a violência contra a criança também o é. Em um artigo publicado nos Cadernos Pagu, a pesquisadora Tatiana Savoia Landini analisa as notícias publicadas no jornal O Estado de São Paulo com relação a esse tema. Recolhendo reportagens de dois períodos diferentes (o início e o final do século XX), Tatiana identifica uma mudança significativa não só na quantidade e no detalhamento (crescentes) dessas notícias, como também uma mudança do que é considerado crime ou abuso. Vale a pena lê-lo.

*

Não acredito que seja eticamente pertinente, em hipótese alguma, a defesa de atos violentos cometidos por causa de uma dissimetria de poder já estabelecida. Assim como não proponho a relativização da dor, de qualquer dor.

E é justamente por isso que me deixa puto da vida a demonização que se faz do pedófilo e a vitimização que se faz da criança, ambos achatados por um senso moral raso que desconsidera a complexidade humana e a especificidade de cada caso, tendo como objetivo exorcizar um mal e não resolver um problema.

*

A dor deve ser respeitada. Qualquer que seja essa dor.




Em 1945, tropas aliadas libertam a Holanda da ocupação nazista. Num vilarejo de pescadores, um menino assiste à chegada de um minúsculo exército canadense, responsável por correr dali um contingente alemão ainda menor. No meio desse exército, um soldado chama a atenção do menino - e o soldado, por sua vez, não tira os olhos do garoto.

*

Numa cidadezinha do oeste estadunidense, dois meninos entram para um time de beisebol. Um deles, Neil, se torna o melhor jogador do time; o outro, Brian, é um menininho desengonçado e tímido demais para jogar bem. Dez anos depois, Brian continua sendo um rapaz tímido e desengonçado, Neil ainda é o dono da bola e o treinador do time de beisebol sumiu do mapa, deixando apenas rastros.

*

For a lost soldier (Holanda, 1992) e Mysterious Skin (EUA, 2005) são filmes que encenam relacionamentos sexuais entre adultos e crianças.

Mysterious skin é um filme narrado sob dois pontos de vistas, um para cada menino. Eles não se conhecem e, aos dezoito anos, a vida leva cada um dos dois a reviver o abuso sexual sofrido na infância. Em duas cenas maravilhosamente sintéticas, cada um dos meninos recebe chuva sobre si.

Brian, sentado no escuro à noite e apavorado, sente os primeiros pingos de água fria. Neil, por sua vez, sorrindo sobre um fundo claro, recebe no rosto rodelinhas de froot loops, aquele cereal colorido.

*

Jeroen, o menino de For a lost soldier, fica fascinado pelo soldado bonitão. Aos doze anos, ele sente desejo - cada vez mais difícil de refrear - pelos meninos e homens com quem convive. O soldado mais tarde diria, numa língua que o menino holandês seria incapaz de compreender, que, no momento em que seus olhares se cruzaram ele percebeu que o menino era diferente.

Começa então uma dança de sedução. O soldado, Walt, já tem o repertório corporal da cópula. Jeroen, no entanto, ainda não possui nenhum repertório de canalização do desejo sexual. Esse hiato entre os dois faz com que, à medida que Walt se aproxima fisicamente do menino, Jeroen se afaste fisicamente do homem e depois, encontrando espaço para se movimentar, aproxime-se tateando um ritmo próprio.

*

Aos nove anos de idade, Neil já se masturba com frequência e fica fascinado quando vê o treinador do time, que encarna o homem das suas fantasias: alto, forte, de bigode (estamos nos anos 80). A casa do treinador, então, é o sonho de qualquer menino, cheia de doces e videogames.

O treinador faz com que Neil se sinta à vontade, convidando-o várias vezes à sua casa antes de transar com o menino. Aos poucos, ele faz com que Neil se encaixe em uma série de situações de fetiche: grava sua voz, tira fotos, brinca de posições e atividades diferentes.

*

Em Mysterious skin, todas as cenas de sexo remetem diretamente a clichês da indústria pornográfica. Quando Neil, mais velho, trabalha como garoto de programa em Nova Iorque, um de seus clientes tira as roupas, se põe de quatro na cama e diz algo como agora fode o meu cu apertado com essa sua rola dura de moleque. O repertório de sacanagem em inglês é infinito e Neil o vivencia desde a infância.

For a lost soldier, por outro lado, se passa nos anos 40, num espaço quase pré-cinema. Anterior, portanto, à proliferação massiva da imagem que vivemos hoje. As experiências, parece, são mais narrativas do que imagéticas. Jeroun e Walt brincam entre si, mas são brincadeiras que não anteveem um resultado. Ao contrário das atividades propostas pelo treinador, que visam atingir determinada composição cênica, como nos livros do Marquês de Sade.

Em For a lost soldier, o que poderia parecer um filme sobre o abuso sexual na infância se transforma, suavemente, numa história de amor. As únicas violências existentes no filme são a violência da guerra, que pelos inusitados caminhos de Eros é o que acaba unindo o casal, e a violência do próprio Amor, que tem o dom de ser tão contrário a si mesmo.

Já em Mysterious skin / não há sombra de amor. Apenas rupturas, coisas rasgadas e deixadas, faltas que ficam. Brian passa o filme inteiro tentando descobrir o que aconteceu com ele quando criança, pois não se lembra de nada e seus pesadelos frequentes parecem apenas desviá-lo dos fatos. Neil se empenha em proliferar o fetiche, mantendo o seu corpo no estado de objeto de prazer em que o treinador o usava.

*

Walt retorna ao Canadá junto com as tropas aliadas, deixando o menino Jeroen desolado. No momento em que o filme começa, Jeroen adulto (intepretado por si mesmo, o autor da autobiografia que inspirou o filme) monta um espetáculo de dança em que pretende rememorar essa fase de sua vida. Ele nunca mais soube de Walt.

Um dia, o treinador desaparece. Assim como Walt, ele não se despede. Mysterious skin dá a entender que o treinador é um criminoso em série, tendo talvez partido para outra cidade em busca de outro menino. For a lost soldier dá a entender que o soldado, não podendo mais ficar no país estrangeiro nem se despedir propriamente de Jeroen (pois eles não falam a mesma língua), volta à sua insuportável vida canadense, levando consigo o amor do menino.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O livro das mil e uma noites

As histórias do Livros das Mil e Uma Noites são todas engenhosas. Numa, o ifrit (eu não sabia, mas o gênio também tem um quê de demônio) que o pescador liberta de uma urna lacrada quer matar o pescador. "Mas por quê?!", pergunta o pescador, "se eu te salvei da prisão!". E o ifrit responde:

"Nos primeiros cem anos que eu fiquei preso nessa urna, eu pensava ai eu vou conceder todas as vontades de quem me livrar desta prisão. E nos primeiros cem anos ninguém me livrou da prisão. Nos mil anos seguintes, eu pensava ai eu vou conceder três desejos para quem me livrar desta prisão. E nos mil anos seguintes ninguém me livrou da prisão. Então, cheio de raiva, eu comecei a pensar ai eu vou matar com a pior das mortes quem me livrar desta prisão. Aí você apareceu, pescador, e me salvou. Por isso é absolutamente imperioso que você morra."

*

Acontece um monte de coisas, que eu não vou ficar contando agora. O pescador e o ifrit entram num duelo de argumentos mas, no Livro das Mil e Uma Noites, os argumentos são todos narrativos e, para convencer alguém a fazer o que você está pedindo, é necessário contar a história de um vizir invejoso que um dia disse ao rei que.

*

As histórias, muito mais numerosas que as noites, vão se fagocitando mutuamente, de modo que os personagens se multiplicam e chega um ponto em que você não reconhece mais um espaço narrativo delimitado, pois tudo se desenrola simultaneamente e as narrativas se cruzam como fios de um tapete louco, múltiplas e desordenadas.

*

O filme As Mil e Uma Noites, do Pasolini, é a recriação mais perfeita que pode existir dessa técnica narrativa.

*

Uma coisa, no entanto, me motivou a vir escrever aqui. Foi imaginar que essas estorinhas engenhosas que fazem pop-up pelo livro talvez não fossem tão impressionantes se não fosse a unidade que lhes dá Sherazade e seu ofício de adiar a execução à qual o rei quer submetê-la.

O rei, convencido de que é impossível que as mulheres sejam fiéis, resolve casar-se a cada dia com uma moça diferente e mandar matá-la assim que a manhã chegue.

Sherazade, pela contação de histórias que deixam o marido com mais curiosidade do que ódio, se empenha em acabar com a desgraça causada pela decisão do rei.

*

As estórias nelas mesmas lembrariam talvez algo como as fábulas de La Fontaine, que têm lá sua delícia, mas se esgotam assim que terminam. Entrecruzadas, no entanto, as narrativas de Sherazade causam microexplosões na ficção e, tão variadas, são como a telenovela que deixa a gente emocionada apreensiva divertida vivendo junto e sem querer que aquilo termine.

É muito bonita essa dimensão narrativa, essa função de dar movimento ao leitor. Ler as noites de Sherazade à noite pode ser um péssimo negócio. No livro, as personagens nunca dormem: Sherazade, sua irmã e o rei ficam até o amanhecer envolvidos pela história. Então levantam-se, vão ao dia e, ao retornarem ao quarto, a história prossegue de onde havia parado.

O sono é uma pequena morte, onde as luzes se apagam e a gente abre espaço pro desconhecido. No Livro das Mil e Uma Noites, tudo o que se faz é adiar a morte pela afirmação da capacidade de inventar. Não é preciso dormir, faz Sherazade, para sonhar. No filme de Pasolini um personagem sorri de alegria ao dizer

A verdade não está num só sonho, mas em muitos sonhos!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

alheava (2)

ainda a falar do trabalho alheava

*

Uma das coisas que mais me impressiona é a dosagem do tempo. Não me lembro, agora, de ver nada parecido em literatura. Talvez o Boitempo, do Drummond, três livros publicados durante onze anos / também neles a memória. Mas nunca li nenhum deles com atenção para dizer.

Dez anos é o tempo há que Manuel Santos Maia realiza o seu trabalho.

*

O Maia mistura objetos pessoais e públicos num mesmo espaço de afeto / num mesmo espaço de exposição. Onde se reúnem fotos de família, móveis da avó, notas de dinheiro, mapas.






É da história comum de Portugal e Moçambique. Essa miscelânea de registros / na memória não há espaço para avareza. Sobre a memória, Ecléa Bosi escreve num ensaio

Existe, dentro da história cronológica, outra história mais densa de substância memorativa no fluxo do tempo. Aparece com clareza nas biografias; tal como nas paisagens, há marcos no espaço onde os valores se adensam.

(...) A sociedade industrial multiplica horas mortas que apenas suportamos: são os tempos vazios das filas, dos bancos, da burocracia, preenchimento de formulários...

(...) Se a substância memorativa se adensa em algumas passagens, noutras se esgarça com grave prejuízo para a formação da identidade. É grave também nesse processo o ofuscamento perceptivo, ou melhor dizendo, subjetivo, uma vez que afeta o sujeito da percepção.

As coisas aparecem com menos nitidez dada a rapidez e descontinuidade das relações vividas; efeito da alienação, a grande embotadora da cognição, da simples observação do mundo, do conhecimento do outro.

Desse tempo vazio a atenção foge como ave assustada.

*

Em alheava, a substância memorativa não se adensa à revelia dos macropoderes com seus trâmites impalpáveis, mas juntamente a eles. Como nos exercícios de matemática coloridos com lápis de cor, os despojos de oficialidade que os governos derrubam sobre a nossa memória são ressignificados e entram nas veias das nossas lembranças de um modo que, talvez, a máscara da alienação não seja capaz de sustentar.

Insisto no afeto.

No afeto, a alienação das horas mortas / das imagens mortas / pode adquirir significados imprevistos.

*



*

(esses posts estão sendo escritos a duras penas e impressões parcamente concatenadas. Eu agradeceria muito alguma ajuda, viu)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

alheava (1)

A memória da dor / é muito do que se diz e que circula por aqui. Bastante gente diz que os quatrocentos anos de escravidão, os quinhentos de matança de índios, os cem de república policial. Que a tortura durante o regime militar de 1964. Que é possível que o trauma / esse íntimo incognoscível e doloroso da psicanálise /que o trauma possa ser coletivo. E o tratamento para o trauma / desejo de Saúde / é o rasgo dos discursos, Pandora abrindo a caixa no divã. Ou nas artes.

*

As metáforas hospitalares deixam-nos doentes do passado. Um trauma é encalacrado como tumor. Se coletivo, nós vivemos a metástase.

Caso as metáforas sejam reversíveis / com o projeto alheava, de Manuel Santos Maia, me ocorre pensar que a alegria pode ser uma ação de busca de um presente perdido no passado.

*

Qualquer busca implica um movimento. E todo movimento, por ser o oposto da melancolia (desencanto com o passado, medo do futuro, tristeza no presente, ação paralisada), já tem em si um princípio de alegria.





*

Já que em 2016 haverá Olimpíadas no Rio de Janeiro, é legal que a gente considere que o Estado-Nação está nos nossos corpos / assim como nos documentos / mas também no nosso afeto. Um dos divertimentos da psicanálise é dissecar o sonho / historiciza os símbolos / e ninguém há de depor contra o materialismo histórico que como prática de pensamento não só é de muita valia contra o despotismo teocrático como é inerente à organização social burguesa que conta os segundos como moedas.

Mas se a gente novamente conseguir retroceder na análise / e tentar entender, antes, o amor dos lápis de colorir.

*


*
Free Blog Counter