quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Caixa-preta

As aparências desenganam. Estou desenganada.

O lance da contracultura: referências não compartilhadas. Um texto que diz

Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três
da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.

põe na mesa, no aleatório, o diário pra ser espiado. E o diário se expia quando o leitor abraça a memória alheia, embebe-se nela, o reality show acirra as brigas em casa: cada membro da família toma pra si as feridas das pessoas quaisquer que estão na tela.

Em A teus pés, o texto medusa-sereia. Fagocita a pessoa que lê, traga-a na comunhão que diz suas memórias cotidianas são tão importantes quanto as minhas. Depois petrifica a leitura num ritmo.

*

Como única evidência de um desastre, sumário dos destroços. A caixa-preta é encontrada e nós a acessamos como registro histórico, a pista definitiva pro mistério. Mas o poeta é um fingidor ("A gente sempre acha que é / Fernando Pessoa") e Ana C. não é tonta: finge a pista, decola e aterrisa um OVNI, maravilha, apoteose. Em diversos poemas encena a mulher fatal:

"Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna."

"Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo."

"Fotogramas do meu coração conceitual.
De tomara-que-caia-azul-marinho."

"ATRAS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão,
por injunções muito mais sérias, lustrar pecados
que jamais repousam?"

"Aviso que vou virando um avião. Cigana
do horário nobre do adultério."

"... santa que te toma as duas mãos."

"Abre a boca, deusa
(...) as mulheres gostam
de provocação"

"eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar
(...)
bem viada, vândala"

"Não, Pedro, não quero mais brincar de puta."

"Acordei com coceira no hímen."

"Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça
o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais
quem desejo, que me assa viva"

Gostosa e independente, esfinge e joguete. Imagens atribuídas mais ou menos a qualquer escritora até então (Clarice Lispector, Patrícia Galvão, Sylvia Plath, Virginia Woolf, Alejandra Pizarnik). Ana C. escreve uma pose.

*

("Caixa-preta" é o título de um poema, escrito à Ana C, do cantos de estima)

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