quinta-feira, 28 de maio de 2009

Ensaio para a loucura

1.

Nos tempos antigos não tinha essa de louco: colocava-se tudo num barco, abandonando-se-o no horizonte. E que os loucos se comessem as carnes ou os tubarões se encarregassem.

Mas já no Dom Quixote aparece: o herói não bate bem da bola. De tanto ler ficou confuso, acha que é um personagem de cavalaria. O que não acontecia nos antigos: ninguém achava que era Aquiles pra sair cercando Tróia por aí. A loucura no Quixote aparece como medo da ficção - que, sem limites, é um perigo - tal como uma cidade, um forte, um condomínio.

Então aparece Freud pra dizer que de louco todo mundo tem um pouco (porque o Freud dizia que a razão não era assim tão razoável e estamos todos perigando). Só num século de Freud é que é possível Antonin Artaud. E é um tal de gente louca na literatura do século XX, que foi toda de escritores-incompreendidos-marginais-na-sociedade-capitalista.

Os escritores, claro, quase todos lúcidos queriam mais era colocar lenha na fogueira dos personagens.

Talvez os escritores loucos tenham tematizado menos a coisa. Sylvia Plath foi uma. A redoma de vidro, que é uma espécie de sua autobiografia, não fala de uma loucura de triunfo. É um lugar atormentado que a personagem principal ocupa. Mas também não é trágico. É a loucura de quem percebe que precisa se adequar?

Diferente se você pega o Lima Barreto, o Machado de Assis, o Guimarães Rosa. Mesmo a Clarice Lispector. Nelxs a loucura tem um fundo moral calcado numa conceituação quase alegórica, mas essencialmente racional.

No dos outros é refresco, não é mesmo?


2.

Também há a loucura como referência para um processo criativo. O desregramento dos sentidos. No colégio é bem comum a gente achar que declamar dramaticamente um texto é se esgoelar e pôr a língua pra fora a cada estrondo. Às vezes a pessoa não percebe e fica a vida inteira refinando essa performance até que ela fique praticamente imperceptível. Outras vezes a pessoa desenvolve a ironia como sistema de defesa contra esses arroubos de seriedade da loucura fingida. E há, também, o exercício da desarticulação dos procedimentos artísticos para obtenção de um produto final inesperado pela percepção do espectador O.O


3.
Olhando o meu passeio
Há um louco sobre o muro
Balançando os pés.
Mostra-me o peito estufado de pêlos
E tem entre as coxas um lixo de papéis:
- Procura Deus, senhora? Procura Deus?

E simétrico de zelos, balouçante
Dobra-se num salto e desnuda o traseiro.

(Hilda Hilst, Do desejo)

4.

O título do texto é do trabalho do gUi mohallem, que eu estava vendo quando comecei a fazer as livres-associações. Mas pra falar de fotografia me falta repertório. Deixo o caminho.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Resposta pra Júlia

a gente está vivendo uma espécie de parnasianismo não está?

Olha, nunca tinha pensado nisso. Até porque é tanta a afoita modernista de achar que tudo começou em 22 que eu reluto em associar parnasianismo com uma coisa ruim. Em si.

Mas "uma espécie" recoloca os termos. Nojinho da FLIP, dos saraus de governo, eventos literários e a-gi-ta-ção-cul-tu-ral. Tudo isso cheira a pompa. De pomba. Que é bicho com fama de bonito mas que é bem do-vagabundo. Que nem albatroz, imagina!

No entanto, eu pergunto: quem é que diz ouvir estrelas?


***

Em tempo: por falar em estrelas e tal, a sempre citável epígrafe de O caderno rosa de Lori Lamby, da Hilda Hilst:

Todos estão na sarjeta. Mas alguns de nós olham para as estrelas.

Oscar Wilde

E quem olha se fode.

Lori Lamby

O espaço do afeto

minha amiga faz um livro de poemas, fabrica: punhados na mão, cada um em sequência me dá sensação. e pergunta: "é bom? que tal?". olha, primeiro eu respondi que era. mas, agora, pensando bem, percebo que eu gostar dos seus poemas é muito saber para quem eles foram escritos, sentir o gosto que você joga no meu ouvido e todo o nosso papo de amor e as nossas crenças similares, se eu não te tivesse nas mãos não será que os seus poemas iriam me parecer insossos e ralos no lugar de tanto abalo sísmico? Primeiro eu respondi que era, mas, agora, pensando bem, eu respondo: que são.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Fatura

Emily Dickinson passou a vida inteira fechada em casa vestida de branco escrevendo poemas que depois ela costurava em grossos volumes e guardava. Tudo no dentro e de pano.

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E o José de Anchieta, que escrevia na areia?

sábado, 16 de maio de 2009

Anotação de método

descubro que me é difícil ler filosofia porque eu leio as palavras não as ideias. feito peixes que nadam sem terra. e as ideias das palavras. feito as vidas dos peixes.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Poemas para o nosso tempo

Só se escreve no conforto.

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A mesma estante na livraria é berço pro Cabral, pro Rimbaud e pro Dirceu Villa. Se bobear é também pro Groucho Marx: "Não entro em nenhum clube que me aceite como sócio".

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Não interessam os modos de produção, mas apenas os de consumo. Bom poeta aquele que vende - sempre, claro, intermediado. Coragem é fazer pose e aparecer na orelha.

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A tradição que a gente segue é mallarmeana. Mas as palavras, elas mesmas, dizem nada. Fica essa eterna falta do que falar.

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Arrota peru mas comeu mortadela.

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Não escreve por mim nem por você. Celebridade sem mito.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Como educar meninxs

Reduzir a poesia ao lirismo abreviado é desvirilizá-la. Não é à toa que às mulheres só são acessíveis os gêneros poéticos menores.

Antonio Candido, 1944. Notas de Crítica Literária da Folha da Manhã, jornal de São Paulo


Man's love is of his life a thing apart,
'Tis woman's whole existence.

Byron



Tanto Clarice Lispector como Hilda Hilst escolheram homens como autores de seus últimos livros. Em A hora da estrela, o autor ("na verdade Clarice Lispector" aparece sob a dedicatória) Rodrigo S.M. é quem escreve o livro que qualquer "outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas".

CL sabia que esse seria seu último livro, assim como Hilda Hilst, que escreveu Estar sendo. Ter sido como ponto final da carreira literária. Em entrevistas, HH disse que a escolha de um autor-homem se dava pelo reconhecimento final de que, afinal, uma mulher que pensa e escreve é uma terrível contradição de termos.

***

Um dos meus contos preferidos de Hemingway (que é um dos meus contistas preferidos) é aquele que se chama "A mãe do viado" ("The mother of a queen"). Roger, o narrador, conta a história de seu amigo Paco, toureiro que, ao voltar para o México de uma temporada na Espanha, recebe a notícia de que, se não comprar uma perpétua para enterrar sua mãe, os restos mortais dela serão depositados na vala comum. Não fica claro qual o papel de Roger na história: ele dá a entender que ficou cuidando da casa de Paco enquanto ele estava fora e que os dois são bons amigos. Mas, quando Paco se recusa a pagar um jazigo para a mãe, Roger fica transtornada do edi. Começa a cobrar uma grana que Paco lhe deve e diz que não quer mais morar com ele. Como alguém deixa a própria mãe ser jogada na vala comum?
"Eu estou feliz com o que aconteceu com a minha mãe," ele disse. "Você não vai entender".
"Graças a Deus que eu não vou," eu disse.
E, embora Roger seja o macho da história, xingando a bicha truqueira que dá o golpe no amigo e concluindo que "aí é que está uma bicha. Você não consegue tocá-la. Nada, nada pode tocá-las.", no final do conto tem-se a impressão de que o narrador lembra muito mais uma mulher rejeitada do que o machão íntegro guardião da moral.

***

Um amigo meu diz que ler Hemingway é sentir os colhões suados esfregando no seu rosto. E ele diz isso sem intenção de homoerotismo.

Um outro escritor que te põe os colhões na cara (sem pavonear tanto quanto o Hemingway, no entanto) é Horace McCoy, em Mas não se matam cavalos?. McCoy, que foi conteporâneo de Hemingway, também escreve essa sensibilidade viril do homem duro cheio de compaixão, que tem um emo dentro de si. Esse registro, aliás, deságua nos filmes do Clint Eastwood, mas não tem nada a ver com a tal sensibilidade gay. Enquanto Brokeback mountain é um filme que alardeia os sentimentos, Sobre meninos e lobos (por exemplo) é um filme em que os sentimentos se truncam e não conseguem fluir. Não existe a auto-redenção de quem se volta para si, porque o macho está sempre voltado para os outros, já que ele é o próprio ponto zero da epistemologia. Não à toa a psicanálise é uma ciência de homens para mulheres e bichas, mas poucas vezes para os próprios homens. Excetue-se aí o Woody Allen, que é bastante afeminado, e inclua-se o Analista de Bagé, que faz o que seria a psicanálise do macho ideal

***

Hilda Hilst e Clarice Lispector, na minha opinião, estavam mais se posicionando politicamente no cenário literário do que atestando a incapacidade feminina para os gêneros poéticos maiores. Parece que nenhuma das duas partilhou de uma tradição que pode ter começado com a virada do avesso que Adélia Prado deu em Drummond no poema "Com licença poética":
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Essa é uma linha de escritoras (vão aí Leila Míccolis, Ana C., quem mais?) que veste o vestido com leveza de versos sempre irônica, desdenhando dos gêneros poéticos maiores porque desdenham também do machismo - e se assumem mulher junto com a mise-en-scène dos sexos (já que ninguém nasce mulher, torna-se mulher etc.). É a poesia do feminismo escrachado brasileiro, que faz topless em vez de queimar sutiãs.

Aliás, a Adélia Prado tem um dos versos mais politicamente incorretos, e que é uma delícia:
O amor me envergonha
Da geração da cachaça, do é ou não é, do ou casa ou vai para o convento, não posso ser gay e dizer depende, vou ver, vou tratar do seu caso.
Comigo é na pandega ou na santidade mais rigorosa.

Todo coração é uma célula revolucionária

da mala direta do Quilombhoje

"Escrever é, em última instância, um ato solitário e que se completa quando há a leitura. Sozinho(a), quem escreve enfrenta o papel ou o monitor do pc para trazer todo um universo que talvez venha a ser partilhado por outras pessoas.Escrita e leitura, faces da mesma moeda, dependem de posições de raça, gênero e classe. Há coisas de mulheres que só elas podem escrever, coisas que só os índios, que só os negros podem transformar em conto, poema, romance, peça de teatro. Se o leitor não estiver aberto a essa viagem, criará muros e deixará de viver uma experiência fascinante."

domingo, 3 de maio de 2009

Contato

O que aconteceria se os astrônomos descobrissem, vindos do universo que não é nosso, sinais de vida inteligente? E se esses sinais não fossem conquistados por nós, mas nos achassem? E se houvesse alguma intenção - que não a nossa?

Não sei muito sobre a vida de Carl Sagan, mas me parece que Contato foi o seu único trabalho de ficção. E, ultimamente, é o livro que eu elegeria para me acompanhar numa ilha deserta. É um romance difícil de classificar, principalmente porque ficção científica é um rótulo geralmente dado a histórias fantasiosas demais, onde os seres humanos são muito melhores (ao menos tecnologicamente) do que no tempo em que o autor escreveu.

Mas Sagan escreve uma história sobre a plausibilidade. Não há nada de fantástico no nosso maquinário, nem no fato de que alguns países gastam quantias inimagináveis de dinheiro em armas de conquista, sejam elas mísseis nucleares ou observatórios. É apenas corriqueiro o mundo em que vivemos. E os sinais enviados pela estrela Vega (na verdade emissões de televisão que os extraterrestres receberam e que agora mandam de volta para nós, dizendo "sabemos que vocês estão aí") escancaram isso.

Ellie, a astrônoma estadunidense responsável pela descoberta, brinda com Vaygay, a autoridade soviética no assunto. "Toda aldeia é um planeta", ele diz. "Todo planeta é uma aldeia", ela complementa. Brindando ao penhasco que existe entre as aldeias / e ao canto que as une sobre os penhascos / Carl Sagan escreveu um romance profundamente humanista - no sentido mais bonito da palavra. E gostoso de ler.
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