domingo, 28 de dezembro de 2008

pastiches et mélanges

.
faço o novo descosturando textos velhos / poulet: o pastiche é o primeiro ato crítico: a vontade de imitar, ser o outro / reforjar o ouro

xxx

dentadura perfeita, ouve-me bem:
não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas e chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?

o rilke shake é meio que: sai pra lá shakespeare gertrude stein "eu peço um rilke shake/ engulo um toasted blake/ e danço que nem dervixe" evocando essa galera ao mesmo tempo em que diz mas gente eu não quero ela ou quero só um pouco o tanto for preciso pra fazer bonito

em a teus pés as citações são mais fugazes, vêm pouco nomeadas ou então cifradas. mas qualquer manual de pós-modernidade vai dizer isso.

É de propósito? Medo de dar bandeira? Ouça muito Roberto: quase chamei você mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as letras que você pediu.

xxx


inscrever o texto na roda de leituras: destinatários sempre em vista: xs leitorxs possíveis, xs escritorxs que você tenta bater. ninguém quer agradas a gregos e troianos: com livro em mão,na frente da televisão, cada um sabe muito bem pra que time torce. e de quem quer receber a carícia no dorso.


.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

balões incendiados / coisas que caem do céu

.
agora eu não falo do livro-produto tão bem pensado pela artífice.

livro póstumo é raspas e restos me interessam, mas não interessavam pra ela desse jeito.


I

a gente sempre acha que é
Fernando Pessoa

Eu estilhaçado, eu monumento. A marca mais valiosa do mundo é "Google", que sem patrimônio físico, apenas logotipo, custa mais de 60 bilhões de dólares [2007, ranking BrandZ].

II

10.1.82: "Angústia é fala entupida". Então se desentope: em A teus pés [agora sim] verborragia conversa de senhoras descontrole do ouvido em multidão. Diferente da voz endiabrada do Cazuza, com letras egogênicas unitárias mas figuras incendiadas performance do fogo, fogo do começo. Angústia é pretensão de quem fica/ escondido fazendo fita.

Ana C também:


Lá onde cruzo com a modernidade e meu pensamento passa como
um raio, a pedra no caminho é o time que você tira de campo.

Não tem impedimentos.

a red yes !


.

domingo, 21 de dezembro de 2008

A viagem de Chihiro

com o Belo

guarda o seu nome pra voltar pra casa xxx a plenitude do que faz sentido xxx não há tempo pra rancor medo xxx não há tempo pro pensamento perdido xxx desejo é fazer o movimento xxx vem comigo no caminho eu te explico xxx tudo o que pede requer ação xxx seja porco monstro ou dragão xxx todo vivo um impasse velado xxx não caminha solitário xxx só me sou na relação xxx meu nome está dentro de você xxx o seu no rio em que eu caí xxx todo vivo um espírito pesado xxx todo vivo um banho tomado xxx todo ouro revelado barro xxx aqui não há cartão de crédito xxx aqui não há cinto de segurança xxx el camino se hace al caminar xxx dá a mão se quiser alcançar xxx o fim do feitiço de zeniba xxx o presente que diz obrigado xxx é a ilusão que te faz enxergar xxx os espíritos viajam também xxx atenção xxx e o trem no mar




.

sábado, 20 de dezembro de 2008

a vaca que ri

.
ela produz as entrelinhas em que você vai passar o seu dia, medusa libertadora, você vive no pastiche, ela vai lá pega o momento e diz "tá aqui a epígrafe". uma poesia só de epígrafes: como não amá-la? se eu só for possível com uma frase lapidar, com canção-tema-de-novela, essas verdades sintéticas que fazem chorar. "Autobiografia. Não, biografia. Mulher.", todo o arroto de cultura, o índice onomástico, ainda mais cifrado, cérebro esfinge e seios fartos, quem não beberá das tuas tetas, vaca sagrada, sua vaca, cotidiano permeado de poesia pedra de toque mote da vida, pensa em toda a psicanálise hoje em dia, há espaço para não haver ana cristina? singularidade do sujeito, contra-cultura pop que me livra, castelo de ilusões, floresta de espelhos, anjo? que extermina a dor.



.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

velhice

De que servem os jogos e as alegrias, se eu sou a morada da futura velhice?





A velhice é um dos três estados humanos que despertam a busca do Buda. Refugiado de seu carma no palácio do pai, o príncipe Sidarta escapa um dia aos gozos e se depara, nos arredores miseráveis, com as visões inéditas de um homem doente, um homem velho, um homem morto. E então - com um homem asceta.

A velhice é um modo de miséria. Minha avó repete intransitiva há pelo menos quinze anos: como é ruim ficar velha. Minha outra avó, quando lhe pergunto "como está", ela quase sempre responde: cada vez mais velha.

Chegam juntos o enfraquecimento do corpo e a marginalização da qual poucos escapam. Não há homem branco e bonito que, quando velho, não se torne apenas um velho. A Simone de Beauvoir, ecoada no Brasil pela Ecléa Bosi, diz que a velhice é o momento da vida burguesa em que se evidencia que o ser humano nunca teve valor enquanto tal, mas apenas como força-trabalho.

O trágico na velhice não é a descartabilidade do humano - à qual está submetida, afinal de contas, a maior parte das pessoas do planeta, assim como o próprio planeta e tudo aquilo que não é reconhecido como discurso -, mas a coisificação do protagonista, aquele que um dia teve voz e poder e que, velho, se torna ridículo, débil.

Meu avô um dia, vendo televisão, um comercial em que o vovô era o centro da piada. E ele pra mim criança: "Tá vendo, Marcos: velho é assim".

Na faculdade, durante dois ou três anos, eu foquei as minha atenções no estudo da velhice, de suas representações em alguns textos teóricos (Bosi, Benjamin), mas principalmente na ficção da Hilda Hilst. Nos livros dela eu li mais o abandono dos meus avós.

Só que na ficção de HH, as velhas e os velhos também tristes e sozinhos são punhais pulsantes esguichando sangue e asco, cuspindo nos passantes, luxuriosa sabedoria e corpo aceso.

O Roberto Piva cita Salvador Dali para dizer-se favorável ao regime monárquico: "A monarquia é o sistema político que, pela absoluta centralidade do poder, permite à anarquia nas classes mais baixas". Pois quem não é visto não pode ser punido.

Hoje, no Brasil, proliferam os discursos sobre a velhice. (É melhor calar?). A população brasileira envelhece cada vez mais e os velhos e as velhas, tornados problema de saúde pública, entram cada vez mais nas luzes dos governantes e dos acadêmicos, nós empenhados em cercar a vida.

Nas crônicas que escrevia para o Correio Popular de Campinas (começo dos anos 90), Hilda Hilst propõe a criação do Esquadrão Geriátrico de Extermínio:

Arregimentaríamos várias senhoras da terceira idade, eu inclusive, lógico, e com nossas bengalas em ponta, uma ponta-estilete besuntada de curare (alguns jovens recrutas amigos viajariam até os Txucarramãe ou os Kranhacarore para consegui-lo) nos comícios, nos palanques, nas Câmaras, no Senado, espetaríamos as perniciosas nádegas ou o distinto buraco malcheiroso desses vilões, nós, velhinhas misturadas às massas, e assim ninguém nos notaria, como ninguém nota a velhice. Nossas vidas ficariam dilatadas de significado, ó que beleza espetar bundões assassinos, nós faceiras matadoras de monstros!


***


O Rubem Fonseca tem um conto muito bonito de velhos. Está no livro O cobrador, que é todo propaganda pra que os lascados peguem armas (o livro é de 1979, os militares estavam chafurdando o caminho pra fora). Um asilo campo de concentração e um grupo de velhos parte para o ataque.

***


A Júlia me mandou um link pra esse vídeo. Eu também achei bonito, Júlia, e primeiro até sorri. Talvez seja porque a minha reação mais comum é ficar triste. Li outro dia no Yahoo!Notícias que em dois-mil-e-daqui-a-pouco o Brasil terá 40% da população idosa da América Latina. Você sabia?



.

sábado, 25 de outubro de 2008

Poetas, não

.
eu lia
poesia
a dar com pau
e o make it
new
sempre pensando
"bom que
boa a poli-
lalia que não
tá à toa" ah
poesia o
verbo
vivo

não
que tal
comoção não
me aco-
meta hoje
em dia
é que
se eu leio
tanta
coisa que
meu olho
enguiça
travo a
língua e a
grafia me
suspendo e
sempre penso
"que preguiça!"

p.s.

não
que isso
impeça
de postar
nos
quatro
blogues
periódicos
mantidos por
mim
é só que há
um certo
alívio de me
ver todo
altivo
dando a
público estes
textos

além
do que
sempre
há olhos
frescos
que
vão ler
versos que
pra outros são
toscos e
dizer
"bom que
boa a vida
voa
!
"


.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

no escuro não no claro

Eu sempre pego três quatro livros passo horas a folhear procurando dois três versinhos bonitinhos que eu possa dar de presente pro meu bem, quem diz que eu acho?

Vou fazer o quê? Se não leio com tanto amor quanto os herdeiros do Drummond e seus editores, que lançaram o gracinha bonitinho Declaração de amor cheio de desenhinhos e dádiva pra presentear quem se ama.

Procuro procuro e o mais perto que chego:


Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.


Quem que ama em crueldade? Senão párias pederastas cafetões gente que eu tenho a mínima intenção de ser quando tento me vender como carne para a vida, afeto além minuto, dedicável e saboroso.

Nas horas de marketing pessoal nada de alta poesia, quando muito algum clichê mascado "para mim já não adianta/ tanta coisa sem você", que é toda a alta poesia


r.c.

os grandes colecionadores de mantras pessoais não saberão a metade/ do que aprendi nas canções/ é verdade/ nem saberão/ descrever com tanta precisão/ aquela janela da bolha de sabão/meu bem eu li a barsa/ eu li a britannica/ e quando sobrou tempo eu ouvi/ a sinfônica/ eu cresci/ sobrevivi/ a privada de perto/ muitas vezes eu vi/ mas a verdade é que/quase tudo aprendi/ ouvindo as canções do rádio/ as canções do rádio/quando meu bem nem/ a verdadeira maionese/ puder me salvar/ você sabe onde me encontrar/quando meu mundo cair/ e a luz faltar/ num cantinho do meu quarto/ vou estar/com um panasonic quatro pilhas AAA/ ouvindo as canções do rádio


Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? Até ficar tonto e se estatelar. Aí sim, com todos os versinhos do mundo pra apoiar o cotovelo.



.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

1984

O Calvino em algum lugar fala da diferença que faz: ler um livro na juventude, lê-lo com a juventude pra trás. Diz que "as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão forma às experiências futuras, fornecendo (...) coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se enquanto tal, mas que deixa sua semente."

Os olhos frescos encontram as linhas e o livro arrebata; os calos reconhecem na lombada o que os calejou. Descontado o bibliômano de Brás Cubas (que se arrepiou todo na velhice com um exemplar mais velho que), considerado o presidente Lula (que disse que socialismo é coisa de adolescente), Calvino está tão certo que

Vou começar a reservar alguns livros para a velhice. Coisas amenas e baixinhas, Garret só depois dos quarenta, Alencar dos cinqüenta, nada antes dos trinta. Guardar o Stendhal para a aposentadoria. Por enquanto, só os livros que possam semear uma vida deserto adentro.

as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso

Por enquanto, só o que me deixe bravo e com vontade de explodir. Só o que me faça sentir Winston Smith me embrenhando no mato para escapar do Grande Irmão. Sem conseguir. Mas quem consegue? "Agora que possuíam um esconderijo seguro, quase um lar, já não lhes parecia tão mau encontrar-se raramente, e apenas por algumas horas. O que importava era a existência do quarto sobre a loja do antiquário. Saber que estava lá, inviolado, era quase que o mesmo que estar nele. O quarto era um mundo, uma redoma do passado, onde sobreviviam animais extintos." Animais que são eu mesmo, mais uma porção de gente e o conforto dos começos.



.

domingo, 5 de outubro de 2008

Só lendo

.
a faculdade de letras me viciou.
poesia não é pra ser chata
perdoai
(só) hoje eu acredito
(sei não)
que não ser chata
é o único antídoto
pra chateação



Isso depois de ter lido o Rilke Shake, da Angélica Freitas (Rio de Janeiro: 7Letras, 2007) - do qual eu já tinha muito falado, mas nunca lido comprado, agora sim, de que mais adiantaria um salário?

Porque a Angélica eu conheci de orelhada quando ela morava em São Paulo eu tinha acabado de mudar e ela me escreveu no orkut "vai ler o uivo do ginsberg" eu li fiquei grato e resolvi ter uma boa impressão dela até hoje.

O que não tem nada a ver com o Rilke Shake, porque de boas impressões o tédio está cheio, não é esse o caso. O blog dela é muito legal, sempre recomendei, mas não, o caso ainda não é esse.

Senti enquanto lia o livro no ônibus - como senti quando li o A teus pés pela primeira vez - como um banho de menta e alecrim nos olhos, lavando e fresh! Diferente ler espaçado a história do moço do Stradivarius. Diferente ler com comments o love affair de Gertrude Stein. E, entre os posts, os relatos de poeira no pé que a Angélica vai deixando pelo caminho (ela agora está no México?).

O livro duro na mão é um bloquinho de alegria sacolejando comigo no busão. São trocentos poemas para ser leídos en el transvía - uma masturbação urgente de tesão no transporte público. Não, não é nada de poesia. É diversão. Precisa mais?



As leituras interceptadas. Muito do que eu já tinha lido do Rilke Shake foi trilhado por artiguelhos críticos [ca-han] que falavam de intertextualidade, de crítica social, ao machismo, make-it-new e o escambau. Só no livro em mãos é que dá pra ler, no fluxo, que

As bruxas de Bruxelas
batem panelas
pra espantar as baratas tontas
que vivem nas pontas
dos sapatos delas


, coisa que eu não sabia.

Esse livro é um objeto gostoso de ser folheado e conversado. E mais uma vez eu fico agradecido à Angélica: obrigado.


.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Excesso, latifúndio, dispersão

Depois do desânimo de bibliômano da semana passada, dois encontros me fizeram voltar a gostar de ler: um com a Andrea, que voltou de viagem prolongando experiências; outro com o Pierre Bayard, que chegou pelos correios dizendo "ih, relaxa, mona". Aí, sobre excessos e tal, eu fiquei pensando...

E se "as grandes obras do século XX" foram escritas justamente para não serem lidas? O que os literatos, cheios de si, gabam como uma recusa da poesia ao mundo burguês, automatizado, materialista, consumista, blablablá, pode ser uma bomba de sentido oposto: uma recusa da poesia às pretensões totalizantes, lucrativas (talvez não de capital financeiro, mas sem dúvida de capital simbólico), redutoras e pedantes desses mesmos literatos. Que direcionam o texto pelos seus interesses e dão cabo de todo o resto.

O Grande sertão: veredas, por exemplo, é um texto de perdas e descaminhos, do impreciso. E a crítica literária (que é um gênero textual histórico, não posso abrir mão disso) reconhece isso ao mesmo tempo em que tece interpretações e ergue monumentos para um livro cuja leitura é porosa, areia, impegável. O Grande sertão recusa reducionismos. E - vejam-se os congressos e teses que se multiplicam em mônadas - falha nessa recusa. Assim como todas as outras "grandes obras" que, na verdade, permitem apenas percursos precários de leitura.

Nem no conjunto essa recusa é bem sucedida. Poderia ser? É humanamente impossível que alguém leia com dedicação punhetórea e minúcia todos os catataus editoriais que o século XX deixou, mas ainda assim os literatos conseguem domesticar nomes e idéias por aquilo que Pierre Bayard chama de "faculdades de orientação" numa "visão de conjunto" do que é entendido como alta cultura. Ou seja, o manejo do cânone - que é aquilo que a gente chama, não inocentemente, de "literatura".

... Mas que besteira falar em "recusa da poesia". Não é ela também que engendra a biblioteca como teatro?

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Apatia

O excesso de versos

insônia, ruminação

arruína?

As citações, as retomadas, as investidas

Tudo em torno da engrenagem burocrática de escrever

e de prazer

?


Temendo deste agosto o fogo e o vento
Caminho junto às cercas, cuidadosa
Na tarde de queimadas, tarde cega.
Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.
E ali reencontro o louco:

- Temendo os teus limites, Samsara esvaecida?
Por que não deixas o fogo onividente
Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder
Casando o Onisciente à tua vida?

"

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Escrita / Travesti (II)

3


"Dia dos namorados" é um conto de Rubem Fonseca publicado originalmente em Feliz ano novo (1975) e incluído por Luiz Ruffato na antologia Entre nós: contos sobre homossexualidade, publicada pela Língua Geral no ano passado. Não é exatamente um "conto sobre homossexualidade"; talvez, um conto de um tempo em que travestismo e homossexualidade eram quase sinônimos, quando ainda não havia a figura friendly e bem-aceita do gay nem a apropriação das tecnologias médicas de escultura corporal com que as travestis se produzem hoje.

Viveca é uma menina linda de dezesseis anos que, apesar de estar parada no calçadão de Ipanema, não faz o "tipo piranha de praia". J.J. Santos, o ricaço, fica fascinado e pára sua Mercedes tempo o bastante para que a garota entre no carro e eles sigam em direção ao quarto espelhado da suíte presidencial de um hotel na Barra da Tijuca.

J.J. Santos tomou um gole, tirou o paletó, e disse, vou ao banheiro, fique à vontade.

Quando saiu do banheiro a garota estava nua, deitada na cama, de bruços. J.J. Santos tirou a roupa e deitou-se ao lado dela, fazendo-lhe carinhos, olhando-se nos espelhos. Então a garota virou-se de barriga para cima, um sorriso nos lábios.

Não era uma garota. Era um homem, o pênis se refletindo, ameaçadoramente rijo, nos inúmeros espelhos.


Como no filme Traídos pelo desejo, o surgimento do pênis muda radicalmente o estatuto da personagem de "garota" para "homem". Viveca, até então fêmea-passiva, torna-se não um garoto, o que ainda poderia denotar delicadeza e submissão, mas, "ameaçadoramente", um "homem". Inifinitamente homem, pois o pênis (mais metáfora do que metonímia) se reflete "nos inúmeros espelhos", cercando J.J. como flechas por todos os lados. E, como não poderia deixar de ser, Viveca-homem é o perigo de quaisquer masculinidades confrontadas no espaço íntimo.

O quê? O quê? Está me chamando de ladrão? Eu não sou ladrão! gritou Viveca, levantando-se da cama. Subitamente uma gilete apareceu em sua mão. Me chamando de ladrão! Num gesto rápido Viveca deu o primeiro golpe no próprio braço e um fio de sangue borbulhou na pele.

J.J., estarrecido, fez um gesto de nojo e medo.

Sou viado sim, sou VI-IIII-ADO! o grito de Viveca parecia que ia romper todos os espelhos e lustres.

Não faça isso, suplicou J.J., apavorado.


Viveca, antes uma "garota tão bonita", metamorfoseia-se num corpo estranho e barulhento que causa pavor e nojo em J.J. A situação será resolvida por Mandrake, o narrador do conto que, contratado pelo advogado de J.J., levará Viveca até uma delegacia, onde descobrirão que ela aplica golpes para tirar dinheiro dos clientes, e então ela será presa e silenciada.

Viveca pertence a uma extensa galeria de personagens cuja corrupção moral está intrinsecamente ligada à corrupção de seu corpo e das funções sexuais que esse corpo deveria ter. É uma personagem má, porque perturbada, que tem um corpo mau, porque perturbado. Ainda assim, a escrita de Rubem Fonseca pouco se perturba: após a revelação do pênis, toda a gramática do conto passa Viveca para o masculino, inclusive quando as frases são atribuídas à personagem. No plano da escrita, a identidade de gênero de Viveca está muito bem resolvida - e o resto não passa de fato pitoresco.

,

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Escrita / Travesti (I)

para a Jana

1


O movimento social de travestis tem investido cada vez mais numa legitimação de "travesti" como identidade, e não como estado. Isso quer dizer que, segundo as travestis (a maioria delas, pelo menos), "travesti" não é o-homem-que-se-veste-de-mulher, mas uma pessoa que não se identifica nem como homem, nem como mulher, e sim como: travesti.

Por um lado, isso pode parecer estar na contramão das atuais discussões sobre identidade de gênero, em que cada vez mais se entende (graças ao feminismo, desde Simone de Beauvoir) que ninguém é/nasce "homem" ou "mulher": tornamo-nos "homem" ou "mulher" por uma série de mecanismos simbólicos socialmente legitimados. Então, se o sexo de uma pessoa é sempre artifício, de que vale esse engajamento na criação de um "terceiro sexo", quando poderíamos nos engajar na destruição de "o sexo" pela consideração da pessoa como além-gênero, como supra-gênero, talvez como todo-gênero?

Mas é justamente nesse movimento de historicização das identidades de gênero que as travestis se inscrevem. Lembro de Janaína Lima, uma amiga militante de Campinas (SP), dizendo: "se a identidade é historicamente construída, então nós, travestis, estamos construindo a nossa".


2


Ao dizer isso, numa mesa redonda em frente a um auditório lotado, Janaína estava tornando-se sujeita do discurso, e não objeto, como eu faço aqui neste texto. Quando eu falo sobre travestis, falo de um lugar em que essa experiência não se dá. Minha escrita não tem silicone, embora eu possa escrever sobre silicone.

Não é problema, de modo algum, que um homem escreva uma travesti. Mas é um problema enorme que travestis não se escrevam nem escrevam um homem. Porque o texto não emana de um centro neutro e anterior a tudo, e sim de sujeitxs historicamente situadxs, com experiências historicamente limitadas - absolutamente importantes, mas irremediavelmente limitadas.

Assim como, se Carolina Maria de Jesus jamais tivesse escrito Quarto de despejo, minha única referência da fome seriam as elocubrações digestivas que fazem meus pares da classe média.


,

quarta-feira, 9 de julho de 2008

De todo esse mundo

Imagino Carolina acordada às quatro da manhã, com a luz de uma lâmpada fraca e solta acesa em seu escritório improvisado, entre as tábuas podres de madeira, a pilha de cadernos ao lado e mais um entre os dedos, as palavras sendo cavadas para fora da folha, as três crianças dormindo com fome ao lado, ela com fome, ela escrevendo.

A fome é uma coisa da qual sempre estive muito longe. De modo que é fácil, tão fácil ter uma opinião sobre ela. Assim como é fácil falar, sem vontade de ênfase, a palavra: fome. Uma palavra gorda, que enche a boca, que exige movimento de mastigação para ser pronunciada.

Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, é o encontro da fome com a poesia. Mas não de um jeito canalha. Canalhas somos nós. Carolina é poeta.



27 de maio

[...] Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu deixei e fui para o deposito. Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recibi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estomago reclamava e torturava-me.

... Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.

... A comida no estomago é como o combustivel nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetaculo. E haverá espetaculo mais lindo do que ter o que comer?. Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.


A fome amarela o mundo. É isso o que Carolina conta. E comer é o espetáculo mais lindo. Isso não é simbólico (não tem nada a ver com antropofagia!) e é tão difícil compreender a falta no estômago que eu nunca tive.

Impressiona nos diários de Carolina o relato da miséria, que ela faz, revoltada contra tudo, impiedosa, citando nomes de políticos eleitoreiros, mas também dos vizinhos violentos. "Acho que se eu estivesse num campo de batalha, não ia sobrar ninguém com vida", escreve ela no dia 20 de junho de 1958.



E a irrupção da beleza. Quarto de despejo não é um relato chapado. Não é denuncismo. É a história de uma vida. Com a fome no corpo, Carolina ama um cigano de rosto bonito com quem goza e se decepciona ("O nome do cigano é Raimundo. (...) Êle parece o Castro Alves. Suas sobrancelhas unem-se"). E registra, no dia 25 de julho, um sublime sutil: "Achei o dia bonito e alegre. Fui catando papel".

Anda pela cidade, pára nas bancas de jornal para conversar sobre política, registra as pichações dos estudantes, conversa sobre literatura - sempre catando papel. "Fui na sapataria retirar os papeis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Êle disse-me que não é aconselhável escrever a realidade".

E conta, diversas vezes, sobre a impossibilidade de publicar...

16 de junho

[...] Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Êles respondia-me:

- É pena você ser preta.

Esquecendo êles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça êle já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.


sexta-feira, 4 de julho de 2008

Clarice Lispector, difícil de pegar


Quando eu li A via crucis do corpo, depois de já ter passado por A paixão segundo G.H., Laços de família, A hora da estrela e Perto do coração selvagem ao menos duas vezes cada, e de ter ouvido tudo quanto é opinião comum sobre "a Clarice" (o prenome íntimo que as pessoas usam tanto quanto a menção ao "olhar dela"), e numa época em que estava fortemente envolvido pelos textos de Hilda Hilst, sobretudo por sua "trilogia obscena", a primeira coisa que lembro de ter pensado, com essa mania de um pensar distanciado com que a faculdade de Letras nos impregna, mas também com raiva por perceber o quanto esse "pensar distanciado" é simplificador e abominável, eticamente falando, por domesticar textos de elevado potencial bélico, a primeira coisa que lembro de ter pensado foi: "


Clarice Lispector foi uma escritora. Não no sentido profissional da palavra. Foi escritora porque escreveu, só. Sem amarras, sem escolas, absolutamente texto. Escreveu por diversos gêneros, para diversos públicos, em diversos meios - e fiquei muito aborrecido e emburrecido com os comentários acerca do "intimismo", ou do "engajamento", ou do "feminino" e o escambau. Por que recusamos ser proféticas? E por que gostamos tanto d'"a Clarice" e prestamos tão pouca atenção no que seus textos nos esfregam na cara? Pornografia, denúncia social, auto-ajuda, filosofia, literatura, biografia. Crítica e consumismo. Sem vergonhas. Il mondo è bello perché è vario - e o trabalho de Clarice Lispector também. Intimistas são as opiniões da maioria de seus leitores, acostumados a se apropriar da "literatura" na privatização prática (hedonista ou utilitarista) das nossas expectativas mesquinhas e egocentradas.

.

As fotos são da Júlia Hansen e podem ser vistas, mais outras, aqui

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Música simples

As melhores leituras, eu acho, são aquelas em que o texto propõe um ritmo - e você o abraça, enlaçam-se as cinturas e começa-se a dançar. Eu não danço, nunca tive jeito pra isso, mas já ouvi falar que o legal da dança a dois é que, por mais que haja passos pré-definidos e papéis bem demarcados, os movimentos sempre acontecem como um diálogo, como em teatro, organicidade.

Roçando um ritmo. A leitura é que torna o texto orgânico, vegetal. Uma leitura é uma vida. Própria e presente. E quando há consonância e acertos, dança-se bem, lê-se bem.

Terminei de ler o último livro de Denilson Lopes, A delicadeza: estética, experiência e paisagens, sentado na rede da sala, sozinho na meia-luz da casa, acompanhado apenas pelo barulho dos carros na rua - que às vezes parece, coisa mais estranha, como o barulho do mar - o qual, segundo Denilson, "é preciso desatenção para ouvir. Som repetido, quase imperceptível, quase invisível. É preciso tempo. É preciso se deixar. É preciso não ter medo".

Deixo, então, por instantes, de me sentir desconfortável com o súbito conforto de que gozo numa noite de terça, deitado na rede de um apartamento amplo e quente, longe do frio e da tortura que açoitam lá fora pessoas que eu não sou. Deixo, deixo. Não na recusa da alteridade, não recusando os outros. Mas recusando a mim mesmo, porque o desconforto também pode ser muito agradável e isso, agora, não está. Non c'entra. Tento.




Nem tudo o que Denilson escreve me agrada; muito, não alcanço; outro tanto, não concordo. Mas quero - e sobretudo danço, junto com ele, pelas páginas. Tento sentir a beleza, o leve e o banal enquanto agarro o livro com ambas as mãos para conter o sacolejo rude do ônibus. Tento imaginar, ao ver retalhos de travestis assassinadas, como engendrar a delicadeza - e como suportá-la.

E por mais que não saiba ainda se isso me faz algum sentido, escolho conviver com esse livro - e compartilhá-lo, mas sem pressa. Para dançar é necessário respeitar o parceiro, o compasso da sua caminhada, a hesitação de seus movimentos, para que ambos possam, juntos, decidir o próximo passo.

Deitado na rede, folheio o livro que fala de paisagens, de lounge, bossa nova e sutilezas com a curiosidade de quem já conhece, mas duvida; de quem duvida, mas acolhe. E admite, como experimento de um baile, dançar em outra velocidade, mesmo que só por um momento.
Free Blog Counter