quarta-feira, 9 de julho de 2008

De todo esse mundo

Imagino Carolina acordada às quatro da manhã, com a luz de uma lâmpada fraca e solta acesa em seu escritório improvisado, entre as tábuas podres de madeira, a pilha de cadernos ao lado e mais um entre os dedos, as palavras sendo cavadas para fora da folha, as três crianças dormindo com fome ao lado, ela com fome, ela escrevendo.

A fome é uma coisa da qual sempre estive muito longe. De modo que é fácil, tão fácil ter uma opinião sobre ela. Assim como é fácil falar, sem vontade de ênfase, a palavra: fome. Uma palavra gorda, que enche a boca, que exige movimento de mastigação para ser pronunciada.

Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, é o encontro da fome com a poesia. Mas não de um jeito canalha. Canalhas somos nós. Carolina é poeta.



27 de maio

[...] Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu deixei e fui para o deposito. Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recibi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estomago reclamava e torturava-me.

... Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.

... A comida no estomago é como o combustivel nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetaculo. E haverá espetaculo mais lindo do que ter o que comer?. Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.


A fome amarela o mundo. É isso o que Carolina conta. E comer é o espetáculo mais lindo. Isso não é simbólico (não tem nada a ver com antropofagia!) e é tão difícil compreender a falta no estômago que eu nunca tive.

Impressiona nos diários de Carolina o relato da miséria, que ela faz, revoltada contra tudo, impiedosa, citando nomes de políticos eleitoreiros, mas também dos vizinhos violentos. "Acho que se eu estivesse num campo de batalha, não ia sobrar ninguém com vida", escreve ela no dia 20 de junho de 1958.



E a irrupção da beleza. Quarto de despejo não é um relato chapado. Não é denuncismo. É a história de uma vida. Com a fome no corpo, Carolina ama um cigano de rosto bonito com quem goza e se decepciona ("O nome do cigano é Raimundo. (...) Êle parece o Castro Alves. Suas sobrancelhas unem-se"). E registra, no dia 25 de julho, um sublime sutil: "Achei o dia bonito e alegre. Fui catando papel".

Anda pela cidade, pára nas bancas de jornal para conversar sobre política, registra as pichações dos estudantes, conversa sobre literatura - sempre catando papel. "Fui na sapataria retirar os papeis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Êle disse-me que não é aconselhável escrever a realidade".

E conta, diversas vezes, sobre a impossibilidade de publicar...

16 de junho

[...] Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Êles respondia-me:

- É pena você ser preta.

Esquecendo êles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça êle já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.


4 comentários:

  1. 28 de maio ... A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.

    (Carolina Maria de Jesus, em Quarto de despejo)

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  2. que texto maravilhoso, marcos
    não conhecia carolina maria de jesus e preciso agora de conhecer

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  3. se ela estivesse no campo de batalha, júlia, não ia sobrar ninguém com vida. o livro está no campo. (e eu... sobrevivi?). me foi uma leitura tão.

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  4. onde que eu eu encontro esse livro pra dessobreviver marcos?

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