quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Querido azul

Na última grande viagem que fiz sozinho, levei poucos livros. O ônibus demorou dois dias e meio pra atravessar o sul do Brasil, os pampas argentinos, subir e descer os Andes e chegar a Santiago. Nesse trajeto li O velho e o mar, do Hemingway. Uma edição de bolso em inglês com uma capa xurumbrega. Gostei de uma imagem do texto que dizia algo sobre tartarugas sendo mortas de modo cruel, parece que se lhe cortam os membros e ela continua viva e doendo. O narrador comparava o velho à tartaruga, mas não lembro de que jeito. Na mesma viagem, na volta, li num conto do Cortázar e achei bonito:

TORTUGAS ANIMALES DELICADOS. ALGO TONTOS, NO DISTINGUEN. UNA LASTIMA.

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Levei também o Invenção de Orfeu, do Jorge de Lima. Cada vez que eu pego nesse livro, tenho a impressão de que é, sei lá, o maior livro de poesia brasileira do século XX, um rótulo assim. O-maior-acontecimento-místico-ao-lado-do-Mensagem-de-Fernando-Pessoa. Muito denso e malucão. Mas não consigo ler porque a minha edição é muito ruim, pequenininha gorducha espremida nela mesma, e esse é um livro de e s p a ç o s . São dez cantos ao todo, acho, e eu ainda não consegui passar do IV.

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Agora estou lendo o Auto de Fé, do Elias Canetti. Mas não é um livro bom pra levar em viagens: muito grande, pesa na mochila. E parece que a estória se passa dentro de uma biblioteca. Que quero eu com bibliotecas? Pegar avião, caçar borboleta.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Confissões de leitura

O livro, como produto, independe do texto. Quero dizer: qualquer texto pode ser formatado assim ou assado. Uma boa edição com ilustrações bonitas e voalá, temos um bom livro - de folhear, amor táctil.

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O texto é apenas um dos componentes da leitura. (Machado de Assis, na biblioteca, sempre teve cheiro de pó)

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Comprei um livro lançado neste ano. Tive ânsia de tê-lo. Fui ler e. Era um doce bonito de gosto vagabundo. Cuspi, dei embora.

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De uma propaganda da Estante Virtual: compre em sebos, as livrarias estão cada vez mais achatadas em lançamentos.

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Eu vejo um museu de grandes novidades.

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Diz que perguntavam pro Drummond "e a literatura contemporânea?", e ele respondia "Estou atrasadíssimo nos gregos."

E que perguntaram pra Clarice "que conselho você dá aos jovens escritores" e ela: "Que escrevam."

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Floradas na serra é um romance de Dinah Silveira de Queirós que foi um sucesso na época, 1939. Deu filme com Cacilda Becker nos anos 50. É a história de um grupo de jovens que vai para Campos do Jordão, acho, tratar da tuberculose. A narrativa alterna amores cândidos com golfadas de sangue, mas não chega a ser melodramática. Parece que Cacilda Becker protagonizou o filme no papel da antagonista do livro, a fatal Lucília, que recusa tratamentos e se envolve com muitos homens, mas se fode e termina com uma costela a menos - por conta da tuberculose. Tirar costelas era um tratamento extremo.

Lucília também é título de um romance do Alencar que conta a história de uma mulher forçada pela vida a se prostituir, mas ela tem um bom coração. O nome da heroína e do livro devem remeter ao pirilampo, vagalume, também lucíola, como uma luz fraca e incerta que atravessa densidades escuras até sumir da nossa vista.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Caixa-preta

As aparências desenganam. Estou desenganada.

O lance da contracultura: referências não compartilhadas. Um texto que diz

Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três
da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.

põe na mesa, no aleatório, o diário pra ser espiado. E o diário se expia quando o leitor abraça a memória alheia, embebe-se nela, o reality show acirra as brigas em casa: cada membro da família toma pra si as feridas das pessoas quaisquer que estão na tela.

Em A teus pés, o texto medusa-sereia. Fagocita a pessoa que lê, traga-a na comunhão que diz suas memórias cotidianas são tão importantes quanto as minhas. Depois petrifica a leitura num ritmo.

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Como única evidência de um desastre, sumário dos destroços. A caixa-preta é encontrada e nós a acessamos como registro histórico, a pista definitiva pro mistério. Mas o poeta é um fingidor ("A gente sempre acha que é / Fernando Pessoa") e Ana C. não é tonta: finge a pista, decola e aterrisa um OVNI, maravilha, apoteose. Em diversos poemas encena a mulher fatal:

"Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna."

"Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo."

"Fotogramas do meu coração conceitual.
De tomara-que-caia-azul-marinho."

"ATRAS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão,
por injunções muito mais sérias, lustrar pecados
que jamais repousam?"

"Aviso que vou virando um avião. Cigana
do horário nobre do adultério."

"... santa que te toma as duas mãos."

"Abre a boca, deusa
(...) as mulheres gostam
de provocação"

"eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar
(...)
bem viada, vândala"

"Não, Pedro, não quero mais brincar de puta."

"Acordei com coceira no hímen."

"Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça
o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais
quem desejo, que me assa viva"

Gostosa e independente, esfinge e joguete. Imagens atribuídas mais ou menos a qualquer escritora até então (Clarice Lispector, Patrícia Galvão, Sylvia Plath, Virginia Woolf, Alejandra Pizarnik). Ana C. escreve uma pose.

*

("Caixa-preta" é o título de um poema, escrito à Ana C, do cantos de estima)
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