domingo, 26 de abril de 2009

Così fan tutti

Com vistas ao aniversário de 150 anos da unificação italiana, em Turim termina hoje um evento em que se está discutindo a democracia / as possibilidades democráticas / na unidade nacional. Na vaga dos acontecimentos, o suplemento literário do La Stampa publica matérias sobre as relações entre democracia e literatura.

Na matéria de capa, a afirmação de que a luta do escritor contra a opressão pode se dar, segundo a opinião de "muitos", de duas formas: uma, cívica; outra, estética. Na primeira forma, a literatura deveria representar a opressão e os modos que o oprimido possui para se libertar. Na segunda, a literatura deveria, através da linguagem po-é-ti-ca (ou seja, singular e maravilhas), ser o próprio ato de libertação da barbárie que é a nossa vulgar eloquência. E a matéria conclui que, na verdade, o papel da literatura contra a opressão deve ser cívico e estético, que uma coisa não faz muito sem a outra, vocês podem imaginar.

No caso da democracia / que é o que importa / a literatura deve atuar contra o populismo estético - pois este é um mal para a poesia e a inteligência das nações, assim como o populismo político é uma ameaça às instituições democráticas.

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O Mia Couto, para mim, é todo o mistério do contemporâneo. Um homem branco com um emprego acadêmico (Mia é biólogo) escreve, num país em que não há editoras, histórias sobre povoados de analfabetos e diplomatas europeus, publicadas em livros que se tornam best-sellers na antiga metrópole e no atual império. E é uma pessoa com uma fineza de raciocínio sedutora e um sentimento de possibilidades de salvação que seria ingênuo se não fosse, do modo como ele o formula, tão evidente.

Talvez seja difícil mesmo entender uma escrita assim, lendo-a num país que nem na história oficial tem metade da auto-estima de Moçambique. Nas narrações de Mia Couto, o contexto político é sempre uma briga de crianças ricas que, embora audível o tempo todo, jamais toma a cena principal. É do outro lado que as coisas acontecem.

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Quem cuspia na democracia, lá ao seu modo, era o Pasolini. A inteligência do Pasolini é oposta à do Mia Couto, porque o Pasolini tinha a capacidade de destruir a melhor das intenções - e não de revelá-la no que ela realmente tem de bom, só que não sabe. Um dos lances dele foi perceber uma licenciosidade das idéias cuja força motriz é o aburguesamento irreversível das minúcias. O campesinato acabou, ele dizia. E agora toda a vida é um modo de consumo.

Por falar nisso, acabou de chegar às lojas a edição nacional de Salò ou Os 120 dias de Sodoma, último filme do diretor e, cá do nosso modo, última fronteira de um tabu. O filme ficou proibido pela censura da ditabranda até o fim do governo Sarney (que já era democrático?) e permaneceu ainda por 20 anos fora de mercado, transmitido em cópias piratas e exibições lotadas de cineclubes. É um clássico, em suma.

Salò é baseado, como o próprio título diz, em Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade. Mas Pasolini ambienta a ação despótica sadeana na Itália fascista (embora seus fascistas se vistam como industriais milaneses dos anos 60, preste atenção). Aliás, a Iluminuras acaba de lançar tradução nova do Marquês: Os infortúnios da virtude. E é isso.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Cada um no seu quadrado

Acho que o Barthes fala, n'O prazer do texto, que só se pode escrever crítica de uma coisa da qual não se goste tanto assim. Ou melhor: na qual se sinta prazer um prazer espraiado, mas não gozo. Como na teoria do sublime, em que a maior delícia é inominável.

E pro gozo na leitura não carece uma delícia tão tão grande. Aliás, a primeira frase das Cartas de um sedutor, da Hilda Hilst, é lapidar: "Como pensar o gozo envolto nestas tralhas?". E como os meus últimos livros lidos têm sido o que de melhor se escreve na literatura brasileira contemporânea, sinto-me agora sem palavras para escrever sobre A arte de produzir efeito sem causa, do Lourenço Muttareli, que, gente, é bem escrito pra caralho!

Com o dis-tan-cia-men-to crítico novas blablações virão.


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Vi Cão sem dono, adaptação para o cinema de Até o dia em que o cão morreu, do Daniel Galera. Não li o livro ainda, mas, a depender das minhas leituras do Galera, tudo parece em seu lugar. Aquela coisa de quem conhece a técnica, sobe até um sangue pelo corpo, mas tudo morre na praia. É um cavalo preso. Luz, quero luz. Quem escreve com palavras?


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Em tempo: o novo livro do Moacyr Scliar é i-le-gível. Uma das minhas melhores lembranças de leitor é o final de Um sonho no caroço do abacate. Mas o Manual da paixão solitária tem uma inconsistência narrativa, de forçações de barra no nível sintático, que tem textura de descuido. Beirando o tato duro de escritores como Milton Hatoum e Cristovão Tezza, com pouco yin e um yang medroso. A capa do livro, no entanto, é belíssima.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Para aprender da pedra, frequentá-la

Tem, vamos lá, dois jeitos de escrever.

Um é no amor da palavra. Outro é no conjunto. No primeiro cada letra é burilada, são tampinhas de garrafa caminho acima que brilham na montanha. No segundo as palavras são linha de tecido. É de quem faz tapete.

Na palavra tem o conceito (poundiano?) de condensação, que muita gente atribui ao próprio ser-poético de um texto. Quer dizer, quando a sujeita escreve
Que vertigem, Pai.
Pueril e devasso
No furor da tua víscera
Trituras a cada dia
Meu exíguo espaço.

(Hilda Hilst, Via Vazia)

a conjunção fonética de /t/ e /r/ e /d/, a alternância de vogais abertas e fechadas e a carga semântica do verso "Trituras a cada dia" devem supostamente provocar no leitor a sensação religiosa (que re-liga e faz sentido, "sentimento oceânico" o Freud chama pela amplidão) de ter Deus mastigando seus próprios tímpanos e cartilagens, o que no contexto da leitura do poema vai fazer um supra-eu dizer "você sabe exatamente do que eu estou falando", porque é a constatação do absoluto.

Por outro lado, se o sujeito escreve

Um dia - ou uma noite, de preferência uma noite, a noite é mais propícia para gente como nós e para a evocação da memória que deixamos - alguém lembrará de mim. Quando isso acontecerá, não sei. (...) A entidade que sou - pobre entidade, modesta entidade, lamentável entidade - terá desaparecido. Estarei reduzido a diminutas partículas que ventos e águas disseminarão pelo mundo. Uma partícula fará parte de uma pedra, outra estará na casca de uma fruta, outra na córnea de um leão, no pêlo de uma raposa, no osso de um ser humano. (...)

(Moacyr Scliar, Manual da Paixão Solitária)

a gente geralmente se dá o direito de colocar "(...)" quando essa passagem não é bonita o bastante ou então ai-que-preguiça-de-escrever. Porque perder palavras não vai te fazer perder a leitura. Lembro de pular umas cem páginas quando eu li A Relíquia, do Eça de Queiroz, pensando ai-que-chato-não-sou-obrigada. E não era mesmo.

O Barthes, em O prazer do texto, fala que essa é a grande diferença da literatura do século XIX e a do XX. Segundo ele, não se espera que alguém leia Zola ou Dumas com atenção pesada para cada termo posto. O lance desses caras era escrever folhetim e, se você não relaxar e entrar na história, vai fazer uma leitura muito anal-retentiva.

Por outro lado, não dá pra pular páginas quando você lê Ulisses (ou o Grande sertão: veredas), porque aí você vai perder muita coisa.

(O que, pensando bem, agora me parece uma bobagem. O Grande sertão não foi feito pra ser lido, né gente. Ou, se foi, tá na hora de a gente se perder um pouco)

De qualquer forma, a idéia geral é de que a prosa (o texto prosaico) é mais espraiado, enquanto que o texto poético é pedra dura enigmática.

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Falando em pedra, tem a do Cabral. Na primeira estrofe de "A educação pela pedra" ele descreve uma pedra didática, onde o didatismo está na pessoa que observa a pedra e dela tenta tirar lições. De poética, de economia, de dicção... de vida. Umas diquinha.

Na segunda estrofe, ele fala de uma pedra pré-didática. No Sertão (falando em sertão) a pedra não aprende nada. E nem a gente com ela ("a gente" sendo modo de dizer, porque eu passo cremes e "o sertanejo é antes de tudo..."). A pedra, segundo o poema, "entranha a alma".

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Supostamente a gente não deveria resumir poemas, à diferença de textos não poéticos, em que a palavra não é pedra, é mais biscoito. E aí daria pra trocar seis por meia-dúzia e todo mundo ia entender.

Mas tenta pegar um texto de jornal qualquer e começa a perceber que tudo ali está nas entrelinhas. Justamente pra não ser dito. Ao modo dos poemas.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A chave emperrada

Sobre A chave de casa eu escrevi um texto em cima do muro, sem juízo de valor. É o caso?

Ah, mas eu também preciso dizer: é um texto cafona, sim, arremedo de Lispector. Não dos piores imitadores da Clarice, mas de alguém que segue o rastro sem pólvora. Desses, A chave de casa é dos melhores. Chafurdemos.

Não é um livro ruim, no geral. Falta corpo, falta fogo
--- falta amor ---
Tem, no entanto (falta-amor-tem-no-entanto) uma arquitetura charmosa e, fora o descuido com as palavras, um encadeamento legível. Quer mais? Bom pra passar um tempo, sentir um prazerzinho e adquirir um pouco de conhecimento pitoresco sobre a Turquia.

Mas Proust também é bom. E A hora da estrela não é pra qualquer domingo.
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