quarta-feira, 1 de setembro de 2010

De viagem

o livro é portátil.

nem todos. alguns são troções imensos, pesam nas costas.

Estava lendo O lobo da estepe, mas acabei de desistir dele: é muito chato, pesadão, o objeto leve não compensa. É a história de um homem que fica sendo melhor do que os outros, mas só na cabeça dele. É a história de todo o intelectualismo burguês, e eu lá quero saber?!

Agora saio de viagem e preciso decidir: então o quê? Preciso do livro pelo menos pra chegar lá aonde eu vou. Lá eu pretendo encontrar outro, um melhor, o maior.

a gente sempre espera encontrar Fernando Pessoa.

Vou viajar pra outra língua, e quero muito levar a minha, que nem um chocolate na bolsa, uma delícia minha.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O amor nos tempos do cólera

Dizer "amor" tantas vezes que o amor se dissolva (não que ele suma).

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As narrativas possíveis do amor. O amor é um topos (um lugar-comum) literário. O amor burguês.

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O amor romanceado é o amor burguês. Do romance nasce o melodrama e a telenovela, filha direta do folhetim. O amor nos tempos do cólera é o grande catálogo das narrativas de amor, namoros proibidos desfeitos num desinteresse súbito casamentos de toda vida suicídios putaria fetichista até o amor distraído, que só percebe depois que chega, está tudo lá. O que Barthes fez (em Fragmentos de um discurso amoroso), García Márquez fez bem feito. O livro do francês destrincha o amor, seu dicionário enciclopédico de elucubrações conceituais, como faz Sophie Calle - esta em forma de galeria, não de livro. Já García Márquez usa a própria argila do conceito, sua história, seu prazer.

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Os tempos do cólera. A história se passa na virada do século XIX para o XX. Foi publicada em 1985. Como referência epidêmica, a aids. Não que García Márquez cite isso em algum momento, ou dê a entender, e talvez nem fosse sua intenção permitir essa associação. Inclusive:

uma crítica que se proponha anti-heteronormativa deve atentar - se não priorizar - o fato de O amor nos tempos do cólera ser o grande catálogo do amor heterossexual. Aliás, essa é uma chave de leitura que eu não tinha tido ainda: pois a história de García Márquez desfila uma série de relações que, apesar de variadas, jamais subvertem hierarquias de gênero, raça e classe, para falar dos três pilares clássicos dos discursos de minoria. Portanto, são histórias que reafirmam um determinado modelo de relação, que pode muito bem ser autoritário do ponto de vista de quem está fora da ou submetido à relação. Isso faz da minha leitura, que foi substancialmente de prazer, uma leitura alienada?

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A leitura é um ato político. Uma leitura não alienada é aquela que tem consciência disso.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

gosto

Eu só acredito em um Deus que saiba como dançar.

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(o título do post ia ser "critério", mas então eu pensei: que critério é posterior. Ou, quando anterior, ele impede o ritmo novo.)

Elx vem dançando na sua direção. É pegar ou largar. Livros são assim.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

poesia

hilda hilst, em determinado momento, citando bataille:

"Sinto-me livre para fracassar."

se o sucesso é a ordem das coisas, a palavra sequestrada.

a boa poesia é aquela que mina por dentro a tradição da boa poesia.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

a estante essencial

amarro os livros em cordas

feito uma fila de elefantes indianos, infinita

conheci uma estante que não tem nada além do essencial. a dona, que é uma pessoa iluminada, me disse: aqui cada um tem sua história. dedicatórias, um pouco de tudo, os títulos sem acúmulo.

quero ter uma estante assim.

agora penso: que as prateleiras rompem em enxurrada, natureza wins e a represa em quedas-d'água iguaçu se torna.

os livros inundam a sala, barulho, tsunami tomam o mundo

sem copo.

pra minha próxima vida quero levar isso.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Tropeçavas nos astros desastrada

Agora, toda quarta-feira eu escrevo na Biblioteca do Mundo do Saturnália, um site de astrologia lá de Curitiba. Não faço previsões nem amarração do amor, a não ser que o amor se amarre nesse meu jeito de corpo. É uma coluna fixa sobre literatura, mais ou menos nos moldes do que eu escrevo aqui, mas - até agora - com menos pretensão teórica.

Dizem que quando o Guimarães Rosa morreu, e ele lia até Platão no original, esperavam uma biblioteca eruditissíssima na casa dele. Mas nas prateleiras vazias só havia um manual de astrologia.

Que era um saber erudito antes de virar revista barata em banca de jornal. Faz sentido. Imagine quem seria capaz de ler os textos clássicos, ao menos os renascentistas, tanto latim pra pouca gente. As estrelas falam de nós, mas não nos compreendem. Astrologia é um trabalho de tradução e um saber sobre o tempo. Gosto muito de uns versos simples da Orides Fontela: "tudo / se move". É o final de um poema.

E tem o final lindo do Inferno de Dante. Quando ele e Virgílio passam por Lúcifer, que é o mais fundo do inferno, o ralo. E do lado de baixo do Diabo aparecem aos pés da montanha do Purgatório: "E quindi uscimmo a riveder le stelle". E então saímos, a rever as estrelas.

*

Ligando os estudos astrológicos aos literários, vejo dois caminhos principais. Me parece que o estudo dos arquétipos seja o mais óbvio. Bachelard diz que o arquétipo é um convite à ação - e não uma imagem estagnada, como a gente também pode pensar. Como "convite à ação", Vênus é um movimento, um ritmo, mais do que um conceito. Sendo assim, a estrela Vésper da obra de Manuel Bandeira poderia ser um lumiar para a leitura de seus poemas.

(Não entendo isso, mas é o que tem pra hoje.)

O outro caminho seria o de unir o tempo astrológico ao da historiografia literária, percebendo as convergências (e os hiatos?) entre algumas obras e movimentos artísticos e os movimentos dos astros. A astrologia como marcação temporal da história.

*

Minha intenção não é trilhar nada disso. Agora agorinha mesmo nem intenção tenho. Às quartas-feiras estou aprendendo muito. A coluna se chama Prateleira Mercúrio.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Húmus (sobre Problemas de Gênero, de Judith Butler)

o ponto de partida crítico é o presente histórico

1.

O movimento feminista luta pela igualdade política entre homens e mulheres, partindo do pressuposto que às mulheres é relegado um papel secundário e subalterno no cotidiano. Em A dominação masculina, Pierre Bourdieu observa que o próprio corpo feminino é montado para conferir à mulher fragilidade e fraqueza: o salto ato, a bolsa a tiracolo, os brincos, a saia são elementos que limitam os movimentos da mulher, dificultando seus gestos, tolhendo-os e deixando-a disponível para o uso do homem. Para serem menos vulneráveis, os soldados raspam o cabelo, assim o inimigo tem um lugar a menos para prendê-los. Incapazes de correr e cheias de penduricalhos, as mulheres têm menos chance de resistir ao inimigo.

2.

Numa estrutura heteronormativa de pensamento, a dualidade "homem X mulher" é bélica, autocomplementar e absoluta. Nada existe fora dela, portanto também os conflitos se dão dentro dela. No movimento LGBT, é comum classificar a homofobia como uma forma específica de machismo: o gay não sofre violência por ser homem, mas por se associar simbolicamente à mulher; da mesma forma, a lésbica sofre violência por recusar seu papel de mulher submetida ao desejo do homem.

Mais do que revelar as razões da violência, esse tipo de explicação revela, quando analisamos seus pressupostos, que mesmo nas chamadas relações homoeróticas, entre pessoas do mesmo sexo, o binarismo "homem X mulher" é a medida de todas as réguas, o limite de ação e de pensamento de qualquer pessoa, independente da sua condição e do seu lugar.

3.

Judith Butler defende que esse binarismo é uma ficção totalizadora, na qual as relações de poder se dão e tendem a se manter. Assim, ao lutar pelos "direitos das mulheres", o feminismo parte do mesmo paradigma imperialista e excludente no qual se baseia a dominação masculina, ou seja, a divisão das pessoas em categorias "homem" e "mulher" e, nessas categorias, a divisão de poder e a instituição da hierarquia violenta. "Homem" e "mulher", argumenta Butler, são estilos, não identidades. Ser homem é ser um performer de práticas repetidas identificadas ao masculino, a tal ponto que se mantém, bruxuleante, uma constância de corpo que é socialmente apreendida como uma essência "homem". A masculinidade, então, não é um dado, mas um projeto. A tarefa que Butler propõe ao feminismo é

situar as estratégias de repetição subversiva facultadas por essas construções [de gênero], afirmar as possibilidades locais de intervenção pela participação precisamente nas práticas de repetição que constituem a identidade e, portanto, apresentar a possibilidade imanente de contestá-las.

Em outras palavras, não se trata de lutar pelos "direitos das mulheres", mas de subverter a própria categoria "mulheres" para, na política, lutar também pelos direitos do que essa categoria não abrange. Se a identidade é um efeito de práticas e discursos, ela não é determinada e/ou determinante da política, mas sim é, ela própria, o lugar da política. Cito a autora mais duas vezes:

Meu argumento é que não há necessidade de existir um "agente por trás do ato", mas que o "agente" é diversamente construído no e através do ato.

(...)

as condições que possibilitam a afirmação do "eu" são providas pela estrutura de significação, pelas normas que regulam a invocação legítima ou ilegítma desse pronome, pelas práticas que estabelecem os termos de inteligibilidade pelos quais ele pode circular.
4.

Quando eu sofro uma agressão, verbal ou física, por ser socialmente identificado como "gay", essa agressão não é dirigida a mim pessoalmente, embora ela me agrida pessoalmente. A agressão é dirigida ao indíviduo que atua, deliberada ou inadvertidamente, num campo performático-semântico identificado como subalterno. Funciona mais ou menos como o dispositivo visual do Exterminador do Futuro, que numa multidão identifica o objeto que deve ser exterminado.

Um homem que bate numa mulher está, ao mesmo tempo, agredindo um indivíduo e agredindo um estilo. Da mesma forma, um homem que bate em outro mais baixo, ou mais afeminado, ou mais gordo, ou negro, ou de qualquer modo marcado com algo que o identifique como alguém que foi feito para apanhar. Isso tem uma dupla face na medida em que pressupõe (pensando na matriz heteronormativa) que o homem foi feito para bater.

Esquecendo por um momento as especificidades de gênero que nos trazem a este problema, poderíamos pensar num binarismo mais abrangente, que seria o de "quem bate X quem apanha" dentro de uma relação específica e contingente, que produz uma relação um pouco mais permanente como campo simbólico.

5.

A questão é que eu quero que o meu direito de não ser agredido seja garantido pelo Estado. Os movimentos sociais de minorias discursivas (como o feminista, o negro e o LGBT) buscam garantir esse direito através de uma prática de institucionalização do discurso. Eu, como indivíduo particular e privado, não tenho direito algum no Estado. É apenas no momento em que eu me coloco como cidadão político (o eu da civitas, o eu da pólis), ou seja, como indivíduo público e comum, constituinte do e tutelado pelo Estado, que posso reivindicar o meu lugar de direito no cotidiano do Estado. Se o que me exclui do meu lugar de cidadão político é uma prática específica de corpo que me torna momentaneamente inelegível (eu, quando identificado como gay, me torno objeto de violência), Butler propõe justamente que essa prática - e, portanto, esse estilo - seja ressignificado, não para que eu adquira direitos como esse estilo, mas para que eu elimine a hierarquia das identidades ao mostrar que o não-gay também é um estilo e apenas um estilo.

Se tudo acontece no terreno da performance, Butler propõe a política como uma intervenção local, já que a performance e o discurso são o local da realidade. O "fato de uma identidade ser um efeito significa que ela não é nem inevitavelmente determinada nem totalmente artificial e arbitrária", portanto, se não nos é possível viver sem essas práticas discursivas (pois não existe um ser anterior à prática), o que podemos fazer é parodiar o discurso dominante e, assim, viver novas possibilidades discursivas.

6.

O desmanche da coisa pública - que percebemos (ou deixamos de perceber) particularmente no Brasil, com sua política teleológica proveniente do catolicismo português -, associado às políticas neoliberais, parece que faz do indivíduo a últma trincheira da coisa pública.

7.

Mas se a política é tradicionalmente associada ao masculino, e se os movimentos sociais se empenham em desapropriar a política desse campo simbólico e distribuir suas terras igualitariamente para todxs, quero saber onde ficam as práticas associadas ao feminino, ao menor, ao subalterno. Está claro (está bastante escuro) que o desejo-necessidade pela "melhoria de vida" está intrinsecamente relacionado com o desejo-necessidade pelos símbolos e lugares onde se alocam aquelxs que têm efetiva e atualmente as "melhores condições". Na independência haitiana, os negros escravizados tomaram o poder político e econômico da elite branca. Em Moçambique, o governo retirou os privilégios dos ex-colonos, igualando-os em direitos à população moçambicana. Nada disso me parece errado.

No entanto, não posso eu, macho forte e dominante, por outro lado também ser mulher?


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P.S.

O livro Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, no Brasil foi publicado terrivelmente pela Ed. Civilização Brasileira em 2003. A edição tem tantos problemas de revisão que chega até a dificultar o entendimento e faz a gente se perguntar (o que pode ser uma coisa boa, afinal desalienante do objeto-livro) se a tradução não está também nos passando a perna.

Uma entrevista legal com a Judith Butler pode ser lida aqui.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Faz de conta que todo mundo morreu

Uma leitura psicanalítica dos filmes de zumbi? Faz tempo que eu não pego o Freud, mas do que me lembro:

O duplo é um conceito que narra o reconhecimento que temos de um outro que julgamos similar a nós mesmos, mas que, em dado momento, revela-se estranho. Por lógica e analogia, essa esquisitice que reconhecemos no outro que julgávamos ser similar a nós faz com que reconheçamos, em nós, também a esquisitice do outro. Ou a possibilidade de esquisitice, como a que vemos no outro. Logo, não nos reconhecemos mais.

Freud cita um conto em que o personagem vê da sua janela, em outra janela, uma mulher por quem se apaixona. No desenrolar do conto ele acaba descobrindo que a mulher não é uma mulher, mas um autômato, uma boneca-robô criada por um artífice-cientista.

A palavra usada por Freud para esse conceito é unheimlich: o prefixo "un-" é uma espécie de negação e a palavra "heimlich", ao mesmo tempo em que significa "oculto, clandestino", é derivada de "Heim", que significa "lar, casa".

O morto-vivo costuma aparecer nos filmes como a polpa animal do humano. Fundamentalmente, ele é desprovido de afeto e constituído por fome e esquecimento. A necessidade de devorar pode, ocasionalmente, levar ao desenvolvimento de uma inteligência muito primária, mas às vezes suficiente para devorar seres humanos desesperados que deixam de raciocinar com clareza devido ao medo e ao cansaço. Paradoxalmente, é a própria inumanidade dos zumbis que faz com que eles persistam num caminho em que os humanos coadjuvantes (nunca os protagonistas, como em qualquer filme de terror) acabam falhando. O grande poder do zumbi é a sua persistência.

Assim como o robô é um duplo inorgânico e o vampiro é um duplo maligno, o zumbi é um duplo exclusivamente corporal. Bruce La Bruce, no filme Otto; or, Up with dead people, leva ao extremo a corporalidade do zumbi ao colocar os mortos-vivos para transar. Nesse pornô macabro, o morto devora os intestinos de um homem e depois mete o pau duro na barriga aberta. Os mortos comem duplamente.

George Romero, por sua vez, faz dos zumbis uma alegoria da sociedade de consumo ao filmá-los lado a lado com manequins de loja de roupa* no filme Madrugada dos mortos. No título original, Dawn of the dead, o tom apocalíptico é mais enfático: "dawn" é a alvorada. O pastor evangélico anuncia a nova era dizendo, talvez uma citação bíblica, que "quando os mortos não tiverem mais espaço no inferno, eles andarão entre os vivos". Na sequência de abertura da refilmagem de Madrugada dos mortos, Johnny Cash canta seu Apocalipse country "The man comes around" e se sucedem imagens de zumbis atacando, mas também de guerras e mesmo de manifestações de massa (como a imagem de uma mesquita cheia, com todas as pessoas se inclinando ao mesmo tempo para rezar). A sequência remete à primeira parte do filme Nossa música, de Godard, em que o espectador é bombardeado por cenas de destruição tanto de filmes de ficção quanto de registros históricos, a ponto de você não saber qual é qual e tudo o que resta é a própria destruição, intransitiva.

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(Escrevi isso lendo esse texto aqui e o título é da música dos Homophones)

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* Sylvia Plath escreveu o poema "Os manequins de Munique", parece que com menções aos campos de concentração nazistas.



A perfeição é horrível, ela não pode ter filhos.
Fria como o hálito da neve, ela tapa o útero

Onde os teixos inflam como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida.

Desprendendo suas luas, mês após mês,
sem nenhum objetivo.

O jorro de sangue é o jorro do amor,
O sacrifício absoluto.

Quer dizer: mais nenhum ídolo, só eu
Eu e você.

Assim, com sua beleza sulfúrica, com seus
sorrisos

Esses manequins se inclinam esta noite
Em Munique, necrotério entre Roma e Paris,

Nus e carecas em seus casacos de pele,
Pirulitos de laranja com hastes de prata

Insuportáveis, sem cérebro.
A neve pinga seus pedaços de escuridão.

Ninguém por perto. Nos hotéis
Mãos vão abrir portas e deixar

Sapatos no chão para uma mão de graxa
Onde dedos largos vão entrar amanhã.

Ah, essas domésticas janelas,
As rendinhas de bebê, as folhas verdes de confeito,

Os alemães dormindo, espessos, no seu insondável desprezo.
E nos ganchos, os telefones pretos

Cintilando
Cintilando e digerindo

A mudez. A neve não tem voz.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Debaixo de água e no ar ao contrário

No que a literatura tem de afeto gratuito, feito uma dádiva de ninguém, você andando pela rua passa uma ponte e de repente percebe a belezura de um rio: que é um deslizar de águas. No nosso olhar, elas são só o movimento, sem origem nem destino, e está bem estarem as margens ali, em consonância com as ondas marrons que podiam ser de terra, as margens mesmo que sejam cimentadas, é que a beleza não escolhe ideologia pra pousar.

Naquela entrevista famosa pra TV Cultura, uma parte Clarice Lispector diz que, quando não escreve, está morta. Se existe uma verdade, junto com a Lispector eu escolho esta: é graças à arte que a gente vive.



O que não é nenhuma ideia original - aliás, como nenhuma outra. Um texto muito bonito - "A arte como procedimento", de Chklovski - diz o seguinte:

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já "passado" não importa para a arte.

Essa experiência do devir é a esperança palpável que uma leitura traz quando toca a gente. "Palpável" porque aí não se trata de um ancoramento no futuro, mas sim de um voo firme simultâneo a um pouso leve no presente: o que Gandhi se recusa a chamar de "Verdade" e chama de "experiência com a verdade". Quando lemos um texto que nos faz experienciar a verdade, temos um encontro de matérias (as nossas mãos, o papel do livro) que se transforma num êxtase de sentidos (como quando lemos uma frase e os olhos se desviam do livro, porque o corpo pede). É a vida intensa, concentrada.

Nesse sentido, a literatura não pode ser isolada da experiência material e histórica da leitura. Uma biblioteca é um depósito de possibilidades, mas jamais se poderá ditar as palavras em que os outros se satisfarão, de modo que se torna bastante compreensível porque, para muitas pessoas, as aulas de literatura do colégio se tornam um fardo e, posteriormente, uma lembrança ruim e engraçada.

No ABC da Literatura, Pound desenvolve a ideia de que a literatura deve apenas ser ensinada aos que realmente se interessarem por ela. Realmente, quando tomamos a literatura como um conjunto de referências históricas e conceituais (o cânone ou, no caso de Pound, o paideuma), faz sentido que não seja de interesse geral um aprofundamento nos meandros desses referenciais. No livro Como falar dos livros que não lemos, Pierre Bayard advoga que, sendo impossível a qualquer pessoa ler todas as obras canônicas existentes, o que se deve esperar é uma mínima familiaridade com seus títulos e com a importância que atualmente se dá a cada uma delas. Esse pragmatismo do senso histórico pode ser bastante útil para uma sala de aula.

Também porque, assim, talvez seja possível a gente separar a literatura como uma instituição da literatura como experiência estética. Se mencionar Paulo Coelho numa discussão letrada pode entortar muitos narizes, imagino que a "singularização do objeto" sentida com a leitura de O alquimista não deva ser objeto de desqualificação ou repúdio por parte de ninguém que não queira se fortalecer com o rebaixamento alheio.

***

Comecei esse texto querendo falar do Caio Fernando Abreu, de como eu gostava dos livros dele quando era adolescente e de como ele salvou minha vida. Sendo que, hoje, já não vejo grande coisa na maior parte dos seus contos. Isso é muito bonito no texto, tanto na escrita quanto na leitura: a novidade se impõe pelo acaso e é mais gostoso se a gente estiver disposta a abraçá-la. Um galho boiando no rio.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Fracasso livre

Na contracapa de Amavisse, editado pela Massao Ohno em 1989, Hilda Hilst publica um poema que é uma espécie de fecho do seu livro, um apêndice de fora / e, por isso mesmo, talvez um reto ou um rabo. Não encontrei o poema nas edições das Obras Reunidas pela Globo, mas lembro da citação que ela faz de Bataille ao final: "Sinto-me livre para fracassar".

De modo geral, a poesia de Hilda Hilst nunca teve a brutalidade vulgar de sua prosa. Embora em nenhum momento ela tivesse medo das palavras, inclusive dos barbarismos universais ("Extasiada, fodo contigo / Ao invés de ganir diante do Nada."), é fácil perceber uma mudança significativa de tom entre os textos em verso e os contos e romances da autora.

*

Todo o trabalho de HH pressupõe e ficcionaliza Deus como um Ser anterior e superior, mas ao mesmo tempo imediato e corpóreo pela Sua crueldade inerente. Se Deus é criador de todas as coisas e se toda a vida provém de Deus, e se "É crua e dura a vida", Deus então é uma criança malvada e esquiva que nos inventa a chafurdar, que aperta a campainha e sai correndo.

*

"Um arco-íris de ar em águas profundas."

O "sinto-me livre para fracassar" de certa forma anuncia (no sentido de que noticia) o abandono da dicção sublime para mergulhar nas lamas profundas do sexo, o charco da literatura que é a pornografia. Após Amavisse, HH publicou sua então polêmica trilogia pornográfica, composta por O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d'escárnio. Textos grotescos e Cartas de um sedutor, acrecida de um quarto volume, o único em verso, os contos de fada satíricos de Bufólicas.

*

Hilda Hilst e Clarice Lispector têm muitas semelhanças de trajetória. Gosto disso. E Clarice Lispector publicou, também já com uma carreira consagrada, A via crucis do corpo.

Quando cheguei em casa uma pessoa me telefonou para dizer-me: pense bem antes de escrever um livro pornográfico, pense se isto vai acrescentar alguma coisa à sua obra. Respondi:

- Já pedi licença a meu filho, disse-lhe que não lesse meu livro. Eu lhe contei um pouco as histórias que havia escrito. Ele ouviu e disse: está bem. Contei-lhe que meu primeiro conto se chamava "Miss Algrave". Ele disse: "grave" é túmulo. Então lhe contei do telefonema da moça chorando que o pai morrera. Meu filho disse como consolo: ele viveu muito. Eu disse: viveu bem.

Mas a pessoa que me telefonou zangou-se, eu me zanguei, ela desligou o telefone, eu liguei de novo, ela não quis falar e desligou de novo.

Se este livro for publicado com mala suerte estou perdida. Mas a gente está perdida de qualquer jeito. Não há escapatória.

A via crucis do corpo, que num primeiro momento se apresenta como um livro de contos, vai aos poucos tomando forma de um diário desleixado, às vezes de um caderno de anotações e, por que não?, de um blogue. Pois é uma intimidade que se expõe nos seus métodos e também nos seus afazeres mais banais. "Ah, já sei o que vou fazer: vou mudar de roupa. Depois eu como, e depois volto à máquina. Até já. / Já comi. Estava ótimo. (...)". Como em A hora da estrela, n'A via crucis do corpo Lispector simultaneamente marmoriza e dinamita a si mesma enquanto Autora, Escritora, Celebridade. Assim como os últimos trabalhos de Hilda Hilst, os últimos livros de Lispector escrevem não apenas as histórias que contam, mas também as das pessoas que as contam.

Uma vez fui a Campos de táxi-aéreo e fiz uma conferência na Universidade de lá. Antes me mostraram livros meus traduzidos para braille. Fiquei sem jeito. E na audiência havia cegos. Fiquei nervosa. Depois havia um jantar em minha homenagem. Mas não agüentei, pedi licença e fui dormir. De manhã me deram um doce chamado chuvisco, que é feito de ovos e açúcar. Comemos em casa chuvisco durante vários dias. Gosto de receber presente.

Surge assim que o dispositivo "Literatura", usado para justificar os livros, é esvaziado de significado. "Pois é. Sei lá se este livro vai acrescentar alguma coisa à minha obra. Minha obra que se dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importância à literatura. E quanto ao meu nome? que se dane, tenho mais em que pensar. / Penso por exemplo na amiga que teve um quisto no seio direito (...)".

*

A coisa do blogue que eu disse lá em cima. Escrever um blogue hoje é uma coisa muito besta. Tem até aquela antologia digital da Heloísa Buarque de Holanda. Que eu nem li, então nem sei se é besta. Mas blogues são bestas no sentido de que a coisa já está dada e você só precisa brincar com ela. Admira mesmo é uma dicção tão semelhante à mais banal de hoje ter sido usada em 1974. Ou mesmo mais tarde, pela Ana Cristina Cesar. Aí eu já acho que é profetismo. E antena da raça. Mas só estou escrevendo isso pra relativizar e pra situar bem os termos. Porque não quero ser mal interpretado.

*

Fim.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Romances

Mas só à base de romances nenhum espírito consegue evoluir. O prazer que tal leitura pode oferecer não compensa o desgaste do caráter. Com os romances aprendemos a nos meter nos sentimentos de toda espécie de gente. Facilmente, convertemo-nos nos personagens que nos agradam. Todo e qualquer comportamento passa a ser compreensível. Docilmente, entregamo-nos a propósitos alheios, e assim perdemos de vista, por muito tempo, os nossos próprios. Romances são cunhas que o autor - um comediante que escreve - faz penetrar na personalidade de seus leitores. Quanto mais exatos seus cálculos sobre o tamanho da cunha e a capacidade de resistência, maior a fenda na personalidade.

(Elias Canetti, Auto-de-fé)

*

(o personagem que pensa isso é um moralista. Mal da citação, que tira de contexto e transforma um lampejo num axioma. Uma meia-mentira numa verdade completa. A última frase desse parágrafo é "Os romances deveriam ser proibidos pelo Estado", que, se literariamente não tem nada de genial, tirada da situação desse romance se transforma num desses pedantismos reacionários disfarçados de performance. Ficção, fora da ficção. A gente deveria parar de citar e dizer só o que se diz. A citação é um esconderijo. A não ser quando ela é um raio.)
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