segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Debaixo de água e no ar ao contrário

No que a literatura tem de afeto gratuito, feito uma dádiva de ninguém, você andando pela rua passa uma ponte e de repente percebe a belezura de um rio: que é um deslizar de águas. No nosso olhar, elas são só o movimento, sem origem nem destino, e está bem estarem as margens ali, em consonância com as ondas marrons que podiam ser de terra, as margens mesmo que sejam cimentadas, é que a beleza não escolhe ideologia pra pousar.

Naquela entrevista famosa pra TV Cultura, uma parte Clarice Lispector diz que, quando não escreve, está morta. Se existe uma verdade, junto com a Lispector eu escolho esta: é graças à arte que a gente vive.



O que não é nenhuma ideia original - aliás, como nenhuma outra. Um texto muito bonito - "A arte como procedimento", de Chklovski - diz o seguinte:

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já "passado" não importa para a arte.

Essa experiência do devir é a esperança palpável que uma leitura traz quando toca a gente. "Palpável" porque aí não se trata de um ancoramento no futuro, mas sim de um voo firme simultâneo a um pouso leve no presente: o que Gandhi se recusa a chamar de "Verdade" e chama de "experiência com a verdade". Quando lemos um texto que nos faz experienciar a verdade, temos um encontro de matérias (as nossas mãos, o papel do livro) que se transforma num êxtase de sentidos (como quando lemos uma frase e os olhos se desviam do livro, porque o corpo pede). É a vida intensa, concentrada.

Nesse sentido, a literatura não pode ser isolada da experiência material e histórica da leitura. Uma biblioteca é um depósito de possibilidades, mas jamais se poderá ditar as palavras em que os outros se satisfarão, de modo que se torna bastante compreensível porque, para muitas pessoas, as aulas de literatura do colégio se tornam um fardo e, posteriormente, uma lembrança ruim e engraçada.

No ABC da Literatura, Pound desenvolve a ideia de que a literatura deve apenas ser ensinada aos que realmente se interessarem por ela. Realmente, quando tomamos a literatura como um conjunto de referências históricas e conceituais (o cânone ou, no caso de Pound, o paideuma), faz sentido que não seja de interesse geral um aprofundamento nos meandros desses referenciais. No livro Como falar dos livros que não lemos, Pierre Bayard advoga que, sendo impossível a qualquer pessoa ler todas as obras canônicas existentes, o que se deve esperar é uma mínima familiaridade com seus títulos e com a importância que atualmente se dá a cada uma delas. Esse pragmatismo do senso histórico pode ser bastante útil para uma sala de aula.

Também porque, assim, talvez seja possível a gente separar a literatura como uma instituição da literatura como experiência estética. Se mencionar Paulo Coelho numa discussão letrada pode entortar muitos narizes, imagino que a "singularização do objeto" sentida com a leitura de O alquimista não deva ser objeto de desqualificação ou repúdio por parte de ninguém que não queira se fortalecer com o rebaixamento alheio.

***

Comecei esse texto querendo falar do Caio Fernando Abreu, de como eu gostava dos livros dele quando era adolescente e de como ele salvou minha vida. Sendo que, hoje, já não vejo grande coisa na maior parte dos seus contos. Isso é muito bonito no texto, tanto na escrita quanto na leitura: a novidade se impõe pelo acaso e é mais gostoso se a gente estiver disposta a abraçá-la. Um galho boiando no rio.

2 comentários:

Free Blog Counter