terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Fracasso livre

Na contracapa de Amavisse, editado pela Massao Ohno em 1989, Hilda Hilst publica um poema que é uma espécie de fecho do seu livro, um apêndice de fora / e, por isso mesmo, talvez um reto ou um rabo. Não encontrei o poema nas edições das Obras Reunidas pela Globo, mas lembro da citação que ela faz de Bataille ao final: "Sinto-me livre para fracassar".

De modo geral, a poesia de Hilda Hilst nunca teve a brutalidade vulgar de sua prosa. Embora em nenhum momento ela tivesse medo das palavras, inclusive dos barbarismos universais ("Extasiada, fodo contigo / Ao invés de ganir diante do Nada."), é fácil perceber uma mudança significativa de tom entre os textos em verso e os contos e romances da autora.

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Todo o trabalho de HH pressupõe e ficcionaliza Deus como um Ser anterior e superior, mas ao mesmo tempo imediato e corpóreo pela Sua crueldade inerente. Se Deus é criador de todas as coisas e se toda a vida provém de Deus, e se "É crua e dura a vida", Deus então é uma criança malvada e esquiva que nos inventa a chafurdar, que aperta a campainha e sai correndo.

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"Um arco-íris de ar em águas profundas."

O "sinto-me livre para fracassar" de certa forma anuncia (no sentido de que noticia) o abandono da dicção sublime para mergulhar nas lamas profundas do sexo, o charco da literatura que é a pornografia. Após Amavisse, HH publicou sua então polêmica trilogia pornográfica, composta por O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d'escárnio. Textos grotescos e Cartas de um sedutor, acrecida de um quarto volume, o único em verso, os contos de fada satíricos de Bufólicas.

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Hilda Hilst e Clarice Lispector têm muitas semelhanças de trajetória. Gosto disso. E Clarice Lispector publicou, também já com uma carreira consagrada, A via crucis do corpo.

Quando cheguei em casa uma pessoa me telefonou para dizer-me: pense bem antes de escrever um livro pornográfico, pense se isto vai acrescentar alguma coisa à sua obra. Respondi:

- Já pedi licença a meu filho, disse-lhe que não lesse meu livro. Eu lhe contei um pouco as histórias que havia escrito. Ele ouviu e disse: está bem. Contei-lhe que meu primeiro conto se chamava "Miss Algrave". Ele disse: "grave" é túmulo. Então lhe contei do telefonema da moça chorando que o pai morrera. Meu filho disse como consolo: ele viveu muito. Eu disse: viveu bem.

Mas a pessoa que me telefonou zangou-se, eu me zanguei, ela desligou o telefone, eu liguei de novo, ela não quis falar e desligou de novo.

Se este livro for publicado com mala suerte estou perdida. Mas a gente está perdida de qualquer jeito. Não há escapatória.

A via crucis do corpo, que num primeiro momento se apresenta como um livro de contos, vai aos poucos tomando forma de um diário desleixado, às vezes de um caderno de anotações e, por que não?, de um blogue. Pois é uma intimidade que se expõe nos seus métodos e também nos seus afazeres mais banais. "Ah, já sei o que vou fazer: vou mudar de roupa. Depois eu como, e depois volto à máquina. Até já. / Já comi. Estava ótimo. (...)". Como em A hora da estrela, n'A via crucis do corpo Lispector simultaneamente marmoriza e dinamita a si mesma enquanto Autora, Escritora, Celebridade. Assim como os últimos trabalhos de Hilda Hilst, os últimos livros de Lispector escrevem não apenas as histórias que contam, mas também as das pessoas que as contam.

Uma vez fui a Campos de táxi-aéreo e fiz uma conferência na Universidade de lá. Antes me mostraram livros meus traduzidos para braille. Fiquei sem jeito. E na audiência havia cegos. Fiquei nervosa. Depois havia um jantar em minha homenagem. Mas não agüentei, pedi licença e fui dormir. De manhã me deram um doce chamado chuvisco, que é feito de ovos e açúcar. Comemos em casa chuvisco durante vários dias. Gosto de receber presente.

Surge assim que o dispositivo "Literatura", usado para justificar os livros, é esvaziado de significado. "Pois é. Sei lá se este livro vai acrescentar alguma coisa à minha obra. Minha obra que se dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importância à literatura. E quanto ao meu nome? que se dane, tenho mais em que pensar. / Penso por exemplo na amiga que teve um quisto no seio direito (...)".

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A coisa do blogue que eu disse lá em cima. Escrever um blogue hoje é uma coisa muito besta. Tem até aquela antologia digital da Heloísa Buarque de Holanda. Que eu nem li, então nem sei se é besta. Mas blogues são bestas no sentido de que a coisa já está dada e você só precisa brincar com ela. Admira mesmo é uma dicção tão semelhante à mais banal de hoje ter sido usada em 1974. Ou mesmo mais tarde, pela Ana Cristina Cesar. Aí eu já acho que é profetismo. E antena da raça. Mas só estou escrevendo isso pra relativizar e pra situar bem os termos. Porque não quero ser mal interpretado.

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Fim.

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