quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Notas de leitura

"Os grandes textos são os que transformam o modo de ler" - Ricardo Piglia em entrevista publicada no livro O laboratório do escritor.

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É basicamente o argumento de Jorge Luis Borges no texto Kafka e seus precursores. Após citar quatro precursores da escrita e do pensamento de Kafka, Borges observa que esses precursores nada têm a ver entre si além do fato de que, neles, podemos ver traços kafkianos. E Borges conclui: "O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica a nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro".

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Um texto que leva a uma mudança no modo de ler funciona como uma luz muito forte que, após ser encarada fixamente, atordoa a retina e para onde quer que você olhe haverá cores e estrelas que não estavam lá antes.

A diferença é que, com a leitura, os danos à vista costumam ser permanentes.

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É também o Borges quem menciona que, por estar tão espalhado e presente pelo mundo, o Livro das Mil e Uma Noites já é "parte prévia da nossa memória". Essa afirmação é particularmente interessante por dizer "nossa memória".

A gente pode dizer que vivemos num mundo kafkiano, se na nossa retina estiverem as cores de Kafka. Assim como as Mil e Umas Noites estão na memória daqueles que as viram, ainda que pelos olhos de outros, mesmo que esses outros não as tenham visto, mas ouvido de outros que também podem não ter visto etc.

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Para mim, o fato de o Brasil ter pressuposto a escravidão por quatrocentos anos faz com que, boa parte do tempo, eu pressuponha a escravidão agora em 2009. A escravidão, como fato histórico, é precursora do meu presente não apenas na cronologia, mas cognitivamente.

Posso dizer que 170 milhões de pessoas compartilham o meu passado cronógico, mas quantas pessoas compartilham desse pressuposto fenomenológico?

(Esse foi um exemplo, não estou emitindo juízo de valor)

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O nosso discurso sobre o passado é uma opção por uma concatenação narrativa de fatos eleitos. E é um discurso invariavelmente do agora.

O sol é do tamanho do meu pé.

Assim como a leitura é sempre uma leitura-agora. A leitura é como uma reação química, que só acontece na duração de contato entre dois elementos num determinado ambiente.

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Mas o presente, assim como o passado, não é monolítico. É amorfo e poroso.

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Ler Borges após ter ouvido Diana me deixa muito menos crente no Borges. E ouvir Diana tendo lido Borges faz com que eu ouça com mais prazer as músicas de Diana. No caso, não importa quem veio antes e quem veio depois. Estando os dois no meu passado, estão ambos no meu presente.

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O "grande texto" é uma experiência pessoal ou coletiva?

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Ao ler Kafka, Kafka é um precursor de Kafka.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Dinheiro

para o Belo

É certo que nós podemos significar as coisas que vivemos de jeitos distintos e pessoais. Por exemplo, um tropeção pode ser seguido de risos ou de impropérios. Ainda assim será um tropeção e, se nos levar o tampão do dedo do pé, nos terá levado o tampão do dedo do pé independente da nossa reação a isso.

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Carolina Maria de Jesus escrevia passando fome. É uma personalidade admirável, essa que desmaia por falta de alimento (não acidentalmente, mas como um fato contínuo do cotidiano) e que escreve sobre isso. Ela escrevia seu diário muitas vezes à noite, em cadernos velhos e com luz fraca, passando frio e fome dentro de um barraco de madeira, e essa era sua vida.

Mas Carolina não encarnava a missão do poeta marginalizado, sem lugar na sociedade de consumo, pária da burguesia e etc. Passa longe de seu diário qualquer ímpeto redentor. Carolina apenas deu de ser pobre, preta e mulher num país e numa cidade (São Paulo) em que ser pobre, preta e mulher basta para ser maltratada por qualquer um que se sinta no direito de. Seu livro Quarto de despejo é cheio de raiva, mas também de generosidade e, sobretudo, de atenção. O valor da escrita de Carolina não está no divertimento quase circense, para nós de barriga cheia, de vermos a miséria; está na força de apreensão da palavra. Pois que a poesia se escreve com o sangue da experiência, é esse que inunda o livro de Carolina.

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Estou absolutamente convicto (embora sempre disposto a mudar de ideia) de que as condições materiais de produção de um texto determinam o alcance e o limite desse texto. Não se trata de justificar a poesia pela classe social ou pela psicologia do poeta, mas de não, de modo algum, reduzir a experiência do poema a critérios de leitura fixos e circunscritos. Em outras palavras, também não se trata de justificar a poesia pela classe social ou pela psicologia do leitor.

Clarice Lispector, em A hora da estrela, também escreveu a fome. E, para demarcar que a sua própria experiência excluía invariavelmente a fome da personagem Macabéa, Clarice chegou ao extremo de forjar um autor, Rodrigo S.M., que passa o livro inteiro falando sobre como ele e Macabéa são em tudo diferentes e como, escrevendo sobre ela, lhe é impossível ter a experiência que ela tem. Em A hora da estrela, nem Macabéa nem Rodrigo S.M. são personagem principal: quem é é a diferença entre os dois, é a dor inalienável e que, contudo, não se admite mais dolorida do que qualquer outra dor.

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Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

(Drummond, trecho de "A flor e a náusea", em A rosa do povo)

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A escrita, então, acontece nesse abismo da experiência, extremamente solitária e, justamente nisso, compartilhável (acho que estou discordando do que disse no meu último texto). Cito mais um exemplo, que é o de Simone Weil. Formada em Filosofia, filha de uma família culta e bem de vida, Simone Weil tinha desde cedo as inclinações humanitárias típicas de uma intelectual de esquerda com influências anarquistas. Nós, que defendemos a paz no mundo e lemos O pequeno príncipe, sabemos bem o que é isso.

Pujante, portanto, é ler seus diários da época em que trabalhou, como operária, em uma fábrica. Weil buscava o despojamento quase mártir de tudo o que não fosse compartilhado e compartilhável com os operários, então a classe marginalizada da França. Nisso incluem-se iniciativas de ensino de literatura grega (já que sua profissão era a de professora) dentro das fábricas.

Mas nesses diários que citei, a intelectual de constituição frágil e desacostumada ao trabalho braçal, que se propôs justamente a teorizar sobre a vida do proletariado a partir da experiência do seu cotidiano, praticamente não consegue teorizar. Há dias em que lemos uma justificativa triste de não ter podido escrever por um longo período, graças às dores fortes de cabeça que sentia. Outras vezes, o que ela faz é desenhar as engrenagens das máquinas, explicando como elas funcionam, mostrando que o contato com a máquina era mais imediato do que a reflexão intelectualizada desse contato.

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Falar nas condições materiais da escrita significa admitir que toda escrita é um ato corporal. Falta admitir que toda leitura também seja.

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Dinheiro

Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune, adoré; on a consideration, honneur, qualité, virtus. Quand on n'a point argent, on est dans la dependance de toutes choses et de tout le monde.

Chateubriand

Sem ele não há cova - quem enterra
Assim grátis, a Deo? O batizado
Também custa dinheiro. Quem namora
Sem pagar as pratinha ao Mercúrio?
Demais, as Dânaes também o adoram...
Quem imprime seus versos, quem passeia,
Quem sobe a Deputado, até Ministro,
Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte,
Alma Romana, se não tem dinheiro?
Fora a canalha de vazios bolsos!
O mundo é para todos... Certamente
Assim o disse Deus mas esse texto
Explica-se melhor e doutro modo...
Houve um erro de imprensa no Evangelho:
O mundo é um festim, concordo nisso,
Mas não entra ninguém sem ter as louras.

(Álvares de Azevedo, em Lira dos vinte anos)
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