segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Coração das trevas, de Joseph Conrad (2)

Mas o narrador que reivindica o livro não é Marlow. É um companheiro de viagem de Marlow, um dos que estão ouvindo essa história.

Esse narrador primeiro do livro ocupa apenas alguns poucos parágrafos em mais de cem páginas de texto. E suas intervenções não são propriamente literárias; antes, elas situam a narrativa de Marlow para que ela não seja direta: não é uma voz que narra ao leitor, mas é um texto em que se transcreve uma voz que narrou, não ao leitor, mas àquele que escreveu o texto.

Essa é uma mediação que reproduz outra mediação, que vamos descobrindo ao longo da leitura: a história de Marlow, na verdade, não é dele, mas a de Kurtz, o lendário homem que será resgatado na expedição que Marlow comanda até um ponto longínquo do Congo Belga, misterioso - e perigoso - para os europeus.

Apesar de Kurtz aparecer apenas no final da narrativa de Marlow, é em direção a ele que a história caminha o tempo todo. E, apesar de ele não protagonizar nenhuma das grandes aventuras dessa história, como os perigos que a expedição de Marlow enfrenta, foi Kurz quem viveu de fato a grande aventura, maior de todas.

Tão grande que é só dele. Tão dele que Marlow não a conhece, muito menos o homem que escreve a história de Marlow, muito menos o leitor. Não conhecemos os fatos, quero dizer.

A grande aventura pessoal / o inominável / isso, no entanto, partilhamos. Coração das trevas faz parte de um mundo (o nosso mundo? "nosso" de quem?) em que, pralém dos encontrões diários, o que as pessoas realmente têm em comum é a vivência indizível, é o lacônico do cotidiano. Comunhão frustrada em que, comunicando-nos, a vida pode ser apenas insinuada em processos de desregramento do discurso convencional, o que é exercitado, por exemplo, na psicanálise e na poesia. Em linhas gerais, desde o romantismo a dicção do poeta vem sendo encarada, cada vez mais, como algo pessoal, intransferível e independente das convenções de tema/gênero/público que pautaram toda a retórica poética de Aristóteles até Gregório de Matos, por assim dizer. Analogamente, hoje cada pessoa é encarada como portadora de uma dicção própria para deixar de dizer aquilo que viveu sozinha: o trauma. Todos temos traumas, segundo se diz, e o nascimento é o primeiro trauma, pelo qual todos passam. O trauma, grosseiramente definido, é uma carga de estímulos simultâneos e tão grandes que o nosso corpo não tem condições de abarcar e que, por isso, se torna uma memória intocada e dolorosa, já que não pode ser moldada pela onipresente e necessária fala-de-si. Os vários modos de clínica terapêutica costumam ser tentativas de transformar essas experiências indizíveis em traumas discursivamente possíveis.

No momento em que Marlow conta a seus ouvintes o que Kurtz apenas entredisse, o entredizer do próprio Marlow entra em cena, reverberando no entredizer do narrador anônimo de Coração das trevas, que se encontrará com o entredizer do leitor ele mesmo (desde que esse leitor seja especial o bastante para ter dores íntimas indizíveis). Desse modo, a clássica fala de Kurtz ("O horror, o horror") é tomada por nós como o arquétipo (um arquétipo não-narrativo e não-personificado, logicamente) da experiência moderna.

Um comentário:

  1. Efetivamente, poucos livros darão tanto a pensar na irracionalidade que tomou conta deste nosso mundo quanto o Coração das trevas. E poucos realmente, poderão ser tão ricos que fujam de uma análise reducionista em termos de posições do autor em relação a problemas como colonialismo e racismo, apontando, antes, para desilusão do iluminismo, com a Razão ludibriada pela Besta, a despeito de esta, aparentemente, ser desprovida de inteligência. Desenvolvi este debate neste link: http://observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=591MOS001.

    ResponderExcluir

Free Blog Counter