domingo, 25 de janeiro de 2009

O sol se põe em São Paulo

A Liberdade pra mim ainda é desses bairros em que as coisas somem e reaparecem, aqui como por mágica, lojas e restaurantes que nunca estão onde você os deixou. É também o único lugar de São Paulo que me arrisco a chamar de cosmopolita, pois a pose oriental que se fabrica aqui caminha tão perto da multidão de estrangeiros que vira uma pose autêntica (diferente do neoclassicismo da Faria Lima, das catedrais frustradas da Paulista, da clandestinidade desavergonhada dos Campos Elíseos). Andando pela Liberdade eu me sinto tão nativo quanto estrangeiro, dominando uma parte dos códigos sociais ao mesmo tempo em que me sinto refém da outra, temeroso de cometer gafes que me exponham como forasteiro.

É nesse cenário, e mais ou menos esse sentimento, em que aparece o romance O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho. Dos restaurantes misteriosamente escondidos nas poucas e pequenas ruas do bairro, surge uma história em que o simulacro se desdobra em simulacros e, nesse velamento multiplicado, a verdade aparece possível.

São Paulo é uma cidade que ainda não foi escrita, senão pelas beiradas. O maquinário dos poetas concretos, a ginga asfaltada dos poetas da periferia, a geléia tropicalista, o punk rock, o lirismo pedante dos mários de andrade - apenas partes, instantâneos dessa cidade - que, talvez, não tenha um todo.

Bernardo Carvalho, escrevendo a Liberdade, escreveu uma parte de São Paulo que estava faltando nesse quebra-cabeça: a arquitetura japonesa que não foi construída, mas que está escondida atrás dessas fachadas de arquitetura japonesa.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

destruidores do eu

Na introdução à sua autobiografia, Gandhi diz que
Não é minha intenção escrever propriamente uma autobiografia. Apenas desejo contar a história de minhas várias experiências com a verdade.
A diferença está em que, em uma propriamente autobiografia, o relato da vida dx biografadx esgota-se nele mesmo, forjando um texto frequentemente em tom jornalístico que molda o muitas vezes banal ficcionalizando uma vida exemplar, um herói ou anti-herói que fará bonito nas vitrines. A biografia é um gênero textual localizado, da época do sujeito e da celebridade, o que dá a Gandhi suas dúvidas na hora de iniciar a empreitada. Um colega de cela questiona: "Escrever autobiografias é uma prática típica do Ocidente. Não conheço ninguém do Oriente que as tivesse escrito, com exceção dos que se ocidentalizaram. Além do mais, sobre o que escreveria? Suponha que amanhã o senhor rejeite os princípios que o orientam hoje, ou então que suas intenções presentes não sejam as mesmas no futuro. Não é provável que as pessoas que se espelham em sua palavra, escrita ou falada, se sintam desorientadas?"


Escrever demanda leviandade, uma prática de linguagem laica e promíscua. Buda não escreveu nada. As únicas palavras escritas por Cristo o foram na areia - e ele logo tratou de apagar. O deus hebreu escreveu apenas uma vez, em tábuas seus dez mandamentos, que Moisés tratou de destruir antes de mostrar a qualquer um assim que viu que o povo não era digno do dedo divino. Durante séculos na Europa a escrita era guardada pelos monges, assim como a história e a poesia, nos povos iorubás, eram guardadas pelos griots. Na cristandade, o protestantismo é que foi responsável pela impressão desenfreada da Bíblia, que se tornou acessível a qualquer um e a Salvação não tem nada de coletiva, é prática do self-made.

Então Gandhi, que escreveu muito e muitos panfletos de ação política, agora não escreve uma autobiografia. Mais como Agostinho, relata sua jornada pessoal apenas no que dela se pode extrair de proveitoso para as jornadas pessoais de seus leitores. Ainda diz na Introdução:
O que pretendo alcançar, o que na verdade venho tentando ansiosamente alcançar nos últimos trinta anos, é a auto-realização, encontrar-me frente a frente com Deus, atingir o moksha [liberação]. Minha vida e meu ser caminham em função desse objetivo. Tudo o que faço, falo e escrevo, todas as minhas incursões no campo político, têm essa finalidade. Como sempre acreditei que aquilo que é possível para mim é possível para todos, minhas experiências não acontecem às escondidas e sim abertamente, o que em nada diminui o seu valor espiritual. Há coisas a nosso respeito que só Deus e nós mesmos sabemos. São fatos que não revelamos a ninguém. Os que narrarei aqui não são dessa natureza. São acima de tudo vivências de natureza espiritual e também moral, pois a essência da religião é a moralidade.
Gandhi tenta arrancar o fetiche do fetiche, escrevendo não o autocentramento, mas o relacional, sem o qual a verdade não pode ser experienciada.



ADENDO 1

Ana Cristina Cesar, paradigma, não faz o movimento oposto, ao centrar o texto tão nele mesmo - a confecção do livro-objeto, as referências truncadas, o diário íntimo cifrado - que rasga o propósito destinatário das cartas para fixá-las em leito estéril de papel só remetente?

ADENDO 2

Sobre vidas exemplares, um artigo agudo da Susan Sotag:
The culture-heroes of our liberal bourgeois civilization are anti-liberal and anti-bourgeois; they are writers who are repetitive, obsessive, and impolite, who impress by force—not simply by their tone of personal authority and by their intellectual ardor, but by the sense of acute personal and intellectual extremity. The bigots, the hysterics, the destroyers of the self—these are the writers who bear witness to the fearful polite time in which we live. It is mostly a matter of tone: it is hardly possible to give credence to ideas uttered in the impersonal tones of sanity.

[Xs heróis culturais da nossa civilização burguesa e liberal são antiliberais e antiburgueses; são escritorxs repetitivos, obsessivos e mal-educados, que impressionam por sua força - não simplesmente por seu tom de autoridade pessoal e por seu ardor intelectual, mas pelo sentimento de aguda extremidade pessoal e intelectual. Xs fanáticxs, xs histéricxs, xs destruidorxs do eu - essxs são escritorxs que testemunham os temerosos bem-educados tempos em que vivemos. É majoritariamente uma questão de tom: é quase impossível dar crédito a idéias proferidas nos tons impessoais da sanidade.]

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

synchronoscopio

o livro não deveria valer mais do que cinco reais, e de brinde uma camisinha ou um bibelô ou um lambe-lambe
com o seu avô
na orelha do livro a pergunta "no território da poesia, cadê a graça?" que a Angélica Freitas faz, responde "E chegou o livro do Ismar", que é um livro que diz
você me diz: nunca dês um nome a um trem
sempre é outro trem a passar
eu digo: ha. Ha ha
ha ha

num poema que começa falando
você - como tantos outros - acabou
não morrendo

e que se chama "Rufus", o que deixa tudo mais bonito ainda.

Bem barato, deveria ser, como a locação daqueles filmes que ninguém quer, pra gente dar de presente com dedicatórias de "Feliz aniversário!" ou "eu te amo" ou "Força no divórcio!" e a pessoa ia abrir e ler
quase morri
não morri e engordei
hoje em dia uso samba-canção

e achar muito engraçado, ainda mais se fosse gorda

O Ismar escreveu um livro nele mesmo com corpos e versos tesudos palavras densas e cheias de vultos fogos de artifício que estouram na sua boca feito diplink mas seguros te deixam com todos os dedos, só os movem de lugar.

Deveria ser bem barato, de brinde da Brahma, no bar.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Um All Star para Brecht

Devemos denunciar que torturas são perpetradas para que as relações de propriedade sejam mantidas. Naturalmente, dizendo isso, perdemos muitos amigos, que são contra as torturas porque acreditam na possibilidade de manter as relações de propriedade sem torturas (o que não corresponde à verdade).

Mais ainda: devemos dizer a verdade sobre o estado bárbaro em que se encontra nosso país, para possibilitar aquilo que conduz ao desaparecimento desse estado. Isto é, devemos dizer como podem ser alteradas as relações de propriedade dos meios de produção, mesmo participando dos lucros. E devemos agir com muita astúcia.

(Bertolt Brecht, 1934)

Walter Benjamin conta, nas suas teses sobre o conceito de História, que durante a revolução francesa atirava-se nas torres nos relógios, e interpreta: a revolução tratou de parar o tempo, o tempo do Antigo Regime.

Mais do que a História, a "historicidade" com que procuramos abordar hoje os acontecimentos (fatos históricos) é um instrumento analítico forjado pelos meios de produção burgueses - do tempo burguês que se instaurou a partir do século 18. Todo relógio é passível de uns bons tiros, quando convém.

Luís XVI era a fusão, em um corpo humano, da França terrena e da vontade de Deus para a França. Seu corpo era o próprio Estado. Disso há resquícios hoje, mas é óbvio que vemos nossos governantes de maneira bem diferente.


Em Maria Antonieta, Sofia Coppola conta a história da revolução francesa de um ângulo diferente do que aparece nos materiais didáticos que a gente estuda (eu estudei) na escola e nos cursinhos pré-vestibulares. De certo modo, ela faz aquilo que Benjamin chama de narrar a história dos vencidos, daqueles que não aparecem - ou aparecem pisoteados - nas narrativas oficiais. Maria Antonieta, que os revolucionários nos legaram como a caricatura perfeita da nobreza mole fútil e mesquinha, transforma-se, no filme de Coppola, em uma menina ingênua e assustada, ignorante da França que ultrapassava os jardins de Versalhes.

Coppola transforma radicalmente o corpo-Estado da rainha, público porque incoporação do poder, em corpo individual, com direito a ego, id e super-ego, como qualquer ser humano tem direito hoje em dia. No lugar da rainha da França, Sofia Coppola filma, apenas, Maria Antonieta.

Mas não é uma transposição sonsa, como o Aquiles-Brad Pitt de Tróia. O objetivo de Sofia Coppola parece ser não só recontar a revolução francesa do ponto de vista daqueles que não passavam fome, mas principalmente retratar a nossa contemporaneidade para mostrar, talvez, que certas coisas nunca mudam, por mais que insistamos em quebrar relógios every now and then.

Maria Antonieta-Kirsten Dunst ouve Strokes e usa All Star. Vive uma vida de ócio e consumo, despreocupada do que acontece do lado de fora dos muros altos de seu condomínio de luxo, como se seu único horizonte fosse cuidar de si. E ser feliz. O All Star que ela experimenta é uma piscada de olho para o espectador.

Como bem de consumo, era de se esperar, o filme Maria Antonieta perde esses momentos de desalienação estética para sinopses que vendem a história da "primeira estrela pop de todos os tempos", tornando-o palatável como rock'n'roll. Mas esse discurso deve apenas se somar ao filme como o meio de produção e circulação do qual nenhum bem cultural pode escapar. Se o próprio Brecht só é possível pela editora 34 dos Bracher, não deveis vos indignar.


Quando a turba segurando foices e tochas chegou aos urros na porta do palácio, eu tive medo e compaixão. Maria Antonieta, afinal de contas, não teve culpa de nada, não poderia saber que havia tanta gente assim passando fome, fermentando ódio no estômago. Se ela soubesse, certamente teria tido compaixão também, ela que gostava de cães e crianças, de flores, de gente. É triste quando ela se despede de sua vida para que outras pessoas possam ter um pouco do que ela tem, protagonismo e pão. Porque ela não é má pessoa. E é inocente, tão inocente quanto eu.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Vida e Época de Michael K

Encontrei a Júlia na biblioteca, um dia, e ela me diz "já leu o Coetzee? Desde que li Machado de Assis é o único autor que eu quero ler tudo!". E ela tinha acabado de comprar o Desonra em inglês, porque aqui os livros importados são mais baratos que os nacionais.

Acho que se passaram alguns meses ou talvez uns dois anos e um dia, trabalhando na casa dela, eu queria ler um romance, pedi. Ela me olhou torto e riu ("romance?!"), passou os dedos nas lombadas e acabou me dando este Vida e Época de Michael K, edição nacional mesmo.

É um texto duro, com uma guerra e um homem bobo de lábio leporino, uma mãe à morte e muitos soldados e refugiados sem refúgio. Falando assim a gente lembra "realismo social" das aulas de literatura. É mesmo uma história, sem os tiques metalingüísticos daquela literatura que corre em volta do próprio rabo. É um livro que late - não, é um livro que rosna. Não tem alarde. Duro.

Duro, sem piadas, inscrito no trágico. Mas um trágico tão patético que a gente fica se sentindo até envrgonhado de estar lendo. (Felizmente há um destaque "Prêmio Nobel" na capa, e isso dá muito orgulho no metrô e auto-satisfação deitado na cama sozinho). E não é um livro de epígrafes, então é como mastigar arroz e engolir, sem ninguém em volta.

Com o Machado de Assis a gente morde a língua, ou põe pimenta, ou cospe sem querer um grão pro copo de suco, ou então pensa em alguma coisa e dá risada sozinho. Com o Michael K, no máximo, o gosto na boca perde o sabor, o que faz a gente perder a fome e ficar um pouco triste, na barriga, em tons pastéis.


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