segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Um All Star para Brecht

Devemos denunciar que torturas são perpetradas para que as relações de propriedade sejam mantidas. Naturalmente, dizendo isso, perdemos muitos amigos, que são contra as torturas porque acreditam na possibilidade de manter as relações de propriedade sem torturas (o que não corresponde à verdade).

Mais ainda: devemos dizer a verdade sobre o estado bárbaro em que se encontra nosso país, para possibilitar aquilo que conduz ao desaparecimento desse estado. Isto é, devemos dizer como podem ser alteradas as relações de propriedade dos meios de produção, mesmo participando dos lucros. E devemos agir com muita astúcia.

(Bertolt Brecht, 1934)

Walter Benjamin conta, nas suas teses sobre o conceito de História, que durante a revolução francesa atirava-se nas torres nos relógios, e interpreta: a revolução tratou de parar o tempo, o tempo do Antigo Regime.

Mais do que a História, a "historicidade" com que procuramos abordar hoje os acontecimentos (fatos históricos) é um instrumento analítico forjado pelos meios de produção burgueses - do tempo burguês que se instaurou a partir do século 18. Todo relógio é passível de uns bons tiros, quando convém.

Luís XVI era a fusão, em um corpo humano, da França terrena e da vontade de Deus para a França. Seu corpo era o próprio Estado. Disso há resquícios hoje, mas é óbvio que vemos nossos governantes de maneira bem diferente.


Em Maria Antonieta, Sofia Coppola conta a história da revolução francesa de um ângulo diferente do que aparece nos materiais didáticos que a gente estuda (eu estudei) na escola e nos cursinhos pré-vestibulares. De certo modo, ela faz aquilo que Benjamin chama de narrar a história dos vencidos, daqueles que não aparecem - ou aparecem pisoteados - nas narrativas oficiais. Maria Antonieta, que os revolucionários nos legaram como a caricatura perfeita da nobreza mole fútil e mesquinha, transforma-se, no filme de Coppola, em uma menina ingênua e assustada, ignorante da França que ultrapassava os jardins de Versalhes.

Coppola transforma radicalmente o corpo-Estado da rainha, público porque incoporação do poder, em corpo individual, com direito a ego, id e super-ego, como qualquer ser humano tem direito hoje em dia. No lugar da rainha da França, Sofia Coppola filma, apenas, Maria Antonieta.

Mas não é uma transposição sonsa, como o Aquiles-Brad Pitt de Tróia. O objetivo de Sofia Coppola parece ser não só recontar a revolução francesa do ponto de vista daqueles que não passavam fome, mas principalmente retratar a nossa contemporaneidade para mostrar, talvez, que certas coisas nunca mudam, por mais que insistamos em quebrar relógios every now and then.

Maria Antonieta-Kirsten Dunst ouve Strokes e usa All Star. Vive uma vida de ócio e consumo, despreocupada do que acontece do lado de fora dos muros altos de seu condomínio de luxo, como se seu único horizonte fosse cuidar de si. E ser feliz. O All Star que ela experimenta é uma piscada de olho para o espectador.

Como bem de consumo, era de se esperar, o filme Maria Antonieta perde esses momentos de desalienação estética para sinopses que vendem a história da "primeira estrela pop de todos os tempos", tornando-o palatável como rock'n'roll. Mas esse discurso deve apenas se somar ao filme como o meio de produção e circulação do qual nenhum bem cultural pode escapar. Se o próprio Brecht só é possível pela editora 34 dos Bracher, não deveis vos indignar.


Quando a turba segurando foices e tochas chegou aos urros na porta do palácio, eu tive medo e compaixão. Maria Antonieta, afinal de contas, não teve culpa de nada, não poderia saber que havia tanta gente assim passando fome, fermentando ódio no estômago. Se ela soubesse, certamente teria tido compaixão também, ela que gostava de cães e crianças, de flores, de gente. É triste quando ela se despede de sua vida para que outras pessoas possam ter um pouco do que ela tem, protagonismo e pão. Porque ela não é má pessoa. E é inocente, tão inocente quanto eu.

Um comentário:

  1. continue jogando areia nos meus olhos, amigo. chorando, chorando, mergulhada n´água e olhando de um ângulo diverso, enxergo diverso.

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