sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

destruidores do eu

Na introdução à sua autobiografia, Gandhi diz que
Não é minha intenção escrever propriamente uma autobiografia. Apenas desejo contar a história de minhas várias experiências com a verdade.
A diferença está em que, em uma propriamente autobiografia, o relato da vida dx biografadx esgota-se nele mesmo, forjando um texto frequentemente em tom jornalístico que molda o muitas vezes banal ficcionalizando uma vida exemplar, um herói ou anti-herói que fará bonito nas vitrines. A biografia é um gênero textual localizado, da época do sujeito e da celebridade, o que dá a Gandhi suas dúvidas na hora de iniciar a empreitada. Um colega de cela questiona: "Escrever autobiografias é uma prática típica do Ocidente. Não conheço ninguém do Oriente que as tivesse escrito, com exceção dos que se ocidentalizaram. Além do mais, sobre o que escreveria? Suponha que amanhã o senhor rejeite os princípios que o orientam hoje, ou então que suas intenções presentes não sejam as mesmas no futuro. Não é provável que as pessoas que se espelham em sua palavra, escrita ou falada, se sintam desorientadas?"


Escrever demanda leviandade, uma prática de linguagem laica e promíscua. Buda não escreveu nada. As únicas palavras escritas por Cristo o foram na areia - e ele logo tratou de apagar. O deus hebreu escreveu apenas uma vez, em tábuas seus dez mandamentos, que Moisés tratou de destruir antes de mostrar a qualquer um assim que viu que o povo não era digno do dedo divino. Durante séculos na Europa a escrita era guardada pelos monges, assim como a história e a poesia, nos povos iorubás, eram guardadas pelos griots. Na cristandade, o protestantismo é que foi responsável pela impressão desenfreada da Bíblia, que se tornou acessível a qualquer um e a Salvação não tem nada de coletiva, é prática do self-made.

Então Gandhi, que escreveu muito e muitos panfletos de ação política, agora não escreve uma autobiografia. Mais como Agostinho, relata sua jornada pessoal apenas no que dela se pode extrair de proveitoso para as jornadas pessoais de seus leitores. Ainda diz na Introdução:
O que pretendo alcançar, o que na verdade venho tentando ansiosamente alcançar nos últimos trinta anos, é a auto-realização, encontrar-me frente a frente com Deus, atingir o moksha [liberação]. Minha vida e meu ser caminham em função desse objetivo. Tudo o que faço, falo e escrevo, todas as minhas incursões no campo político, têm essa finalidade. Como sempre acreditei que aquilo que é possível para mim é possível para todos, minhas experiências não acontecem às escondidas e sim abertamente, o que em nada diminui o seu valor espiritual. Há coisas a nosso respeito que só Deus e nós mesmos sabemos. São fatos que não revelamos a ninguém. Os que narrarei aqui não são dessa natureza. São acima de tudo vivências de natureza espiritual e também moral, pois a essência da religião é a moralidade.
Gandhi tenta arrancar o fetiche do fetiche, escrevendo não o autocentramento, mas o relacional, sem o qual a verdade não pode ser experienciada.



ADENDO 1

Ana Cristina Cesar, paradigma, não faz o movimento oposto, ao centrar o texto tão nele mesmo - a confecção do livro-objeto, as referências truncadas, o diário íntimo cifrado - que rasga o propósito destinatário das cartas para fixá-las em leito estéril de papel só remetente?

ADENDO 2

Sobre vidas exemplares, um artigo agudo da Susan Sotag:
The culture-heroes of our liberal bourgeois civilization are anti-liberal and anti-bourgeois; they are writers who are repetitive, obsessive, and impolite, who impress by force—not simply by their tone of personal authority and by their intellectual ardor, but by the sense of acute personal and intellectual extremity. The bigots, the hysterics, the destroyers of the self—these are the writers who bear witness to the fearful polite time in which we live. It is mostly a matter of tone: it is hardly possible to give credence to ideas uttered in the impersonal tones of sanity.

[Xs heróis culturais da nossa civilização burguesa e liberal são antiliberais e antiburgueses; são escritorxs repetitivos, obsessivos e mal-educados, que impressionam por sua força - não simplesmente por seu tom de autoridade pessoal e por seu ardor intelectual, mas pelo sentimento de aguda extremidade pessoal e intelectual. Xs fanáticxs, xs histéricxs, xs destruidorxs do eu - essxs são escritorxs que testemunham os temerosos bem-educados tempos em que vivemos. É majoritariamente uma questão de tom: é quase impossível dar crédito a idéias proferidas nos tons impessoais da sanidade.]

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