Dizer "amor" tantas vezes que o amor se dissolva (não que ele suma).
*
As narrativas possíveis do amor. O amor é um topos (um lugar-comum) literário. O amor burguês.
*
O amor romanceado é o amor burguês. Do romance nasce o melodrama e a telenovela, filha direta do folhetim. O amor nos tempos do cólera é o grande catálogo das narrativas de amor, namoros proibidos desfeitos num desinteresse súbito casamentos de toda vida suicídios putaria fetichista até o amor distraído, que só percebe depois que chega, está tudo lá. O que Barthes fez (em Fragmentos de um discurso amoroso), García Márquez fez bem feito. O livro do francês destrincha o amor, seu dicionário enciclopédico de elucubrações conceituais, como faz Sophie Calle - esta em forma de galeria, não de livro. Já García Márquez usa a própria argila do conceito, sua história, seu prazer.
*
Os tempos do cólera. A história se passa na virada do século XIX para o XX. Foi publicada em 1985. Como referência epidêmica, a aids. Não que García Márquez cite isso em algum momento, ou dê a entender, e talvez nem fosse sua intenção permitir essa associação. Inclusive:
uma crítica que se proponha anti-heteronormativa deve atentar - se não priorizar - o fato de O amor nos tempos do cólera ser o grande catálogo do amor heterossexual. Aliás, essa é uma chave de leitura que eu não tinha tido ainda: pois a história de García Márquez desfila uma série de relações que, apesar de variadas, jamais subvertem hierarquias de gênero, raça e classe, para falar dos três pilares clássicos dos discursos de minoria. Portanto, são histórias que reafirmam um determinado modelo de relação, que pode muito bem ser autoritário do ponto de vista de quem está fora da ou submetido à relação. Isso faz da minha leitura, que foi substancialmente de prazer, uma leitura alienada?
*
A leitura é um ato político. Uma leitura não alienada é aquela que tem consciência disso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário