quarta-feira, 16 de julho de 2008

Escrita / Travesti (I)

para a Jana

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O movimento social de travestis tem investido cada vez mais numa legitimação de "travesti" como identidade, e não como estado. Isso quer dizer que, segundo as travestis (a maioria delas, pelo menos), "travesti" não é o-homem-que-se-veste-de-mulher, mas uma pessoa que não se identifica nem como homem, nem como mulher, e sim como: travesti.

Por um lado, isso pode parecer estar na contramão das atuais discussões sobre identidade de gênero, em que cada vez mais se entende (graças ao feminismo, desde Simone de Beauvoir) que ninguém é/nasce "homem" ou "mulher": tornamo-nos "homem" ou "mulher" por uma série de mecanismos simbólicos socialmente legitimados. Então, se o sexo de uma pessoa é sempre artifício, de que vale esse engajamento na criação de um "terceiro sexo", quando poderíamos nos engajar na destruição de "o sexo" pela consideração da pessoa como além-gênero, como supra-gênero, talvez como todo-gênero?

Mas é justamente nesse movimento de historicização das identidades de gênero que as travestis se inscrevem. Lembro de Janaína Lima, uma amiga militante de Campinas (SP), dizendo: "se a identidade é historicamente construída, então nós, travestis, estamos construindo a nossa".


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Ao dizer isso, numa mesa redonda em frente a um auditório lotado, Janaína estava tornando-se sujeita do discurso, e não objeto, como eu faço aqui neste texto. Quando eu falo sobre travestis, falo de um lugar em que essa experiência não se dá. Minha escrita não tem silicone, embora eu possa escrever sobre silicone.

Não é problema, de modo algum, que um homem escreva uma travesti. Mas é um problema enorme que travestis não se escrevam nem escrevam um homem. Porque o texto não emana de um centro neutro e anterior a tudo, e sim de sujeitxs historicamente situadxs, com experiências historicamente limitadas - absolutamente importantes, mas irremediavelmente limitadas.

Assim como, se Carolina Maria de Jesus jamais tivesse escrito Quarto de despejo, minha única referência da fome seriam as elocubrações digestivas que fazem meus pares da classe média.


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2 comentários:

  1. uma voz homérico e um mulher enorme a mesma a superproduzindo-a. a pós-à si mesma a mulhera.

    (bernardo rb, em morena)

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