sexta-feira, 18 de julho de 2008

Escrita / Travesti (II)

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"Dia dos namorados" é um conto de Rubem Fonseca publicado originalmente em Feliz ano novo (1975) e incluído por Luiz Ruffato na antologia Entre nós: contos sobre homossexualidade, publicada pela Língua Geral no ano passado. Não é exatamente um "conto sobre homossexualidade"; talvez, um conto de um tempo em que travestismo e homossexualidade eram quase sinônimos, quando ainda não havia a figura friendly e bem-aceita do gay nem a apropriação das tecnologias médicas de escultura corporal com que as travestis se produzem hoje.

Viveca é uma menina linda de dezesseis anos que, apesar de estar parada no calçadão de Ipanema, não faz o "tipo piranha de praia". J.J. Santos, o ricaço, fica fascinado e pára sua Mercedes tempo o bastante para que a garota entre no carro e eles sigam em direção ao quarto espelhado da suíte presidencial de um hotel na Barra da Tijuca.

J.J. Santos tomou um gole, tirou o paletó, e disse, vou ao banheiro, fique à vontade.

Quando saiu do banheiro a garota estava nua, deitada na cama, de bruços. J.J. Santos tirou a roupa e deitou-se ao lado dela, fazendo-lhe carinhos, olhando-se nos espelhos. Então a garota virou-se de barriga para cima, um sorriso nos lábios.

Não era uma garota. Era um homem, o pênis se refletindo, ameaçadoramente rijo, nos inúmeros espelhos.


Como no filme Traídos pelo desejo, o surgimento do pênis muda radicalmente o estatuto da personagem de "garota" para "homem". Viveca, até então fêmea-passiva, torna-se não um garoto, o que ainda poderia denotar delicadeza e submissão, mas, "ameaçadoramente", um "homem". Inifinitamente homem, pois o pênis (mais metáfora do que metonímia) se reflete "nos inúmeros espelhos", cercando J.J. como flechas por todos os lados. E, como não poderia deixar de ser, Viveca-homem é o perigo de quaisquer masculinidades confrontadas no espaço íntimo.

O quê? O quê? Está me chamando de ladrão? Eu não sou ladrão! gritou Viveca, levantando-se da cama. Subitamente uma gilete apareceu em sua mão. Me chamando de ladrão! Num gesto rápido Viveca deu o primeiro golpe no próprio braço e um fio de sangue borbulhou na pele.

J.J., estarrecido, fez um gesto de nojo e medo.

Sou viado sim, sou VI-IIII-ADO! o grito de Viveca parecia que ia romper todos os espelhos e lustres.

Não faça isso, suplicou J.J., apavorado.


Viveca, antes uma "garota tão bonita", metamorfoseia-se num corpo estranho e barulhento que causa pavor e nojo em J.J. A situação será resolvida por Mandrake, o narrador do conto que, contratado pelo advogado de J.J., levará Viveca até uma delegacia, onde descobrirão que ela aplica golpes para tirar dinheiro dos clientes, e então ela será presa e silenciada.

Viveca pertence a uma extensa galeria de personagens cuja corrupção moral está intrinsecamente ligada à corrupção de seu corpo e das funções sexuais que esse corpo deveria ter. É uma personagem má, porque perturbada, que tem um corpo mau, porque perturbado. Ainda assim, a escrita de Rubem Fonseca pouco se perturba: após a revelação do pênis, toda a gramática do conto passa Viveca para o masculino, inclusive quando as frases são atribuídas à personagem. No plano da escrita, a identidade de gênero de Viveca está muito bem resolvida - e o resto não passa de fato pitoresco.

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Um comentário:

  1. diferenciar identidade de gênero de biologia é algo para sacudir toda a linguagem.

    pensemos na forma como a tradição gramatical foi sendo recebida. por que hoje lua é mulher, sol homem, etc. relação direta gênero gramatical–identidade de gênero–sexo biológico.

    uma vez vi um professor demonstrando que língua não tem relações de gênero (?). categorias gramaticais são só classificadores estruturais.

    mas será? falar "humanidade" em vez de "homem" significa alguma coisa.

    ainda estamos em uma época aristotélica, platônica? tantas divisões de palavras quanto divisões de idéias, linguagem como espelho do mundo...

    me confundo.

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