quinta-feira, 3 de julho de 2008

Música simples

As melhores leituras, eu acho, são aquelas em que o texto propõe um ritmo - e você o abraça, enlaçam-se as cinturas e começa-se a dançar. Eu não danço, nunca tive jeito pra isso, mas já ouvi falar que o legal da dança a dois é que, por mais que haja passos pré-definidos e papéis bem demarcados, os movimentos sempre acontecem como um diálogo, como em teatro, organicidade.

Roçando um ritmo. A leitura é que torna o texto orgânico, vegetal. Uma leitura é uma vida. Própria e presente. E quando há consonância e acertos, dança-se bem, lê-se bem.

Terminei de ler o último livro de Denilson Lopes, A delicadeza: estética, experiência e paisagens, sentado na rede da sala, sozinho na meia-luz da casa, acompanhado apenas pelo barulho dos carros na rua - que às vezes parece, coisa mais estranha, como o barulho do mar - o qual, segundo Denilson, "é preciso desatenção para ouvir. Som repetido, quase imperceptível, quase invisível. É preciso tempo. É preciso se deixar. É preciso não ter medo".

Deixo, então, por instantes, de me sentir desconfortável com o súbito conforto de que gozo numa noite de terça, deitado na rede de um apartamento amplo e quente, longe do frio e da tortura que açoitam lá fora pessoas que eu não sou. Deixo, deixo. Não na recusa da alteridade, não recusando os outros. Mas recusando a mim mesmo, porque o desconforto também pode ser muito agradável e isso, agora, não está. Non c'entra. Tento.




Nem tudo o que Denilson escreve me agrada; muito, não alcanço; outro tanto, não concordo. Mas quero - e sobretudo danço, junto com ele, pelas páginas. Tento sentir a beleza, o leve e o banal enquanto agarro o livro com ambas as mãos para conter o sacolejo rude do ônibus. Tento imaginar, ao ver retalhos de travestis assassinadas, como engendrar a delicadeza - e como suportá-la.

E por mais que não saiba ainda se isso me faz algum sentido, escolho conviver com esse livro - e compartilhá-lo, mas sem pressa. Para dançar é necessário respeitar o parceiro, o compasso da sua caminhada, a hesitação de seus movimentos, para que ambos possam, juntos, decidir o próximo passo.

Deitado na rede, folheio o livro que fala de paisagens, de lounge, bossa nova e sutilezas com a curiosidade de quem já conhece, mas duvida; de quem duvida, mas acolhe. E admite, como experimento de um baile, dançar em outra velocidade, mesmo que só por um momento.

3 comentários:

  1. muito bonito, marcos
    tudo que eu posso querer pra crítica literária brasileira é que vc escreva cada vez mais

    besos del rokery coffeeshop

    ResponderExcluir
  2. http://setelinhas.blogspot.com/
    2008/07/por-delicadeza.html

    ResponderExcluir
  3. Marcos!
    Sobrevoei seu blog inteiro. Li muita coisa boa. Me entonteci.
    Parabéns!

    agradeço ao sábado e à sua fluência.
    você é um abismo.

    !

    ResponderExcluir

Free Blog Counter