segunda-feira, 11 de maio de 2009

Como educar meninxs

Reduzir a poesia ao lirismo abreviado é desvirilizá-la. Não é à toa que às mulheres só são acessíveis os gêneros poéticos menores.

Antonio Candido, 1944. Notas de Crítica Literária da Folha da Manhã, jornal de São Paulo


Man's love is of his life a thing apart,
'Tis woman's whole existence.

Byron



Tanto Clarice Lispector como Hilda Hilst escolheram homens como autores de seus últimos livros. Em A hora da estrela, o autor ("na verdade Clarice Lispector" aparece sob a dedicatória) Rodrigo S.M. é quem escreve o livro que qualquer "outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas".

CL sabia que esse seria seu último livro, assim como Hilda Hilst, que escreveu Estar sendo. Ter sido como ponto final da carreira literária. Em entrevistas, HH disse que a escolha de um autor-homem se dava pelo reconhecimento final de que, afinal, uma mulher que pensa e escreve é uma terrível contradição de termos.

***

Um dos meus contos preferidos de Hemingway (que é um dos meus contistas preferidos) é aquele que se chama "A mãe do viado" ("The mother of a queen"). Roger, o narrador, conta a história de seu amigo Paco, toureiro que, ao voltar para o México de uma temporada na Espanha, recebe a notícia de que, se não comprar uma perpétua para enterrar sua mãe, os restos mortais dela serão depositados na vala comum. Não fica claro qual o papel de Roger na história: ele dá a entender que ficou cuidando da casa de Paco enquanto ele estava fora e que os dois são bons amigos. Mas, quando Paco se recusa a pagar um jazigo para a mãe, Roger fica transtornada do edi. Começa a cobrar uma grana que Paco lhe deve e diz que não quer mais morar com ele. Como alguém deixa a própria mãe ser jogada na vala comum?
"Eu estou feliz com o que aconteceu com a minha mãe," ele disse. "Você não vai entender".
"Graças a Deus que eu não vou," eu disse.
E, embora Roger seja o macho da história, xingando a bicha truqueira que dá o golpe no amigo e concluindo que "aí é que está uma bicha. Você não consegue tocá-la. Nada, nada pode tocá-las.", no final do conto tem-se a impressão de que o narrador lembra muito mais uma mulher rejeitada do que o machão íntegro guardião da moral.

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Um amigo meu diz que ler Hemingway é sentir os colhões suados esfregando no seu rosto. E ele diz isso sem intenção de homoerotismo.

Um outro escritor que te põe os colhões na cara (sem pavonear tanto quanto o Hemingway, no entanto) é Horace McCoy, em Mas não se matam cavalos?. McCoy, que foi conteporâneo de Hemingway, também escreve essa sensibilidade viril do homem duro cheio de compaixão, que tem um emo dentro de si. Esse registro, aliás, deságua nos filmes do Clint Eastwood, mas não tem nada a ver com a tal sensibilidade gay. Enquanto Brokeback mountain é um filme que alardeia os sentimentos, Sobre meninos e lobos (por exemplo) é um filme em que os sentimentos se truncam e não conseguem fluir. Não existe a auto-redenção de quem se volta para si, porque o macho está sempre voltado para os outros, já que ele é o próprio ponto zero da epistemologia. Não à toa a psicanálise é uma ciência de homens para mulheres e bichas, mas poucas vezes para os próprios homens. Excetue-se aí o Woody Allen, que é bastante afeminado, e inclua-se o Analista de Bagé, que faz o que seria a psicanálise do macho ideal

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Hilda Hilst e Clarice Lispector, na minha opinião, estavam mais se posicionando politicamente no cenário literário do que atestando a incapacidade feminina para os gêneros poéticos maiores. Parece que nenhuma das duas partilhou de uma tradição que pode ter começado com a virada do avesso que Adélia Prado deu em Drummond no poema "Com licença poética":
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Essa é uma linha de escritoras (vão aí Leila Míccolis, Ana C., quem mais?) que veste o vestido com leveza de versos sempre irônica, desdenhando dos gêneros poéticos maiores porque desdenham também do machismo - e se assumem mulher junto com a mise-en-scène dos sexos (já que ninguém nasce mulher, torna-se mulher etc.). É a poesia do feminismo escrachado brasileiro, que faz topless em vez de queimar sutiãs.

Aliás, a Adélia Prado tem um dos versos mais politicamente incorretos, e que é uma delícia:
O amor me envergonha
Da geração da cachaça, do é ou não é, do ou casa ou vai para o convento, não posso ser gay e dizer depende, vou ver, vou tratar do seu caso.
Comigo é na pandega ou na santidade mais rigorosa.

2 comentários:

  1. essa epígrafe do candido vale uma vida

    - -
    e eu fui descobrir o homem - cavalo

    - -
    snif, lindo isso que você escreveu. mas tem mais aposto que tem. e eu quero.

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  2. Ah...Que na dureza de fim de tese em que ando metida, seu post me iluminou o dia :-)
    * esse verso da Adélia Prado (Mulher é dedobrável...) é título de um dos capítulos da minha dissertação;
    ** escrevi um post há pouquinho tempo falando desse mesmo verso.
    Obrigada e beijo!

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