Uma leitura psicanalítica dos filmes de zumbi? Faz tempo que eu não pego o Freud, mas do que me lembro:
O duplo é um conceito que narra o reconhecimento que temos de um outro que julgamos similar a nós mesmos, mas que, em dado momento, revela-se estranho. Por lógica e analogia, essa esquisitice que reconhecemos no outro que julgávamos ser similar a nós faz com que reconheçamos, em nós, também a esquisitice do outro. Ou a possibilidade de esquisitice, como a que vemos no outro. Logo, não nos reconhecemos mais.
Freud cita um conto em que o personagem vê da sua janela, em outra janela, uma mulher por quem se apaixona. No desenrolar do conto ele acaba descobrindo que a mulher não é uma mulher, mas um autômato, uma boneca-robô criada por um artífice-cientista.
A palavra usada por Freud para esse conceito é unheimlich: o prefixo "un-" é uma espécie de negação e a palavra "heimlich", ao mesmo tempo em que significa "oculto, clandestino", é derivada de "Heim", que significa "lar, casa".
O morto-vivo costuma aparecer nos filmes como a polpa animal do humano. Fundamentalmente, ele é desprovido de afeto e constituído por fome e esquecimento. A necessidade de devorar pode, ocasionalmente, levar ao desenvolvimento de uma inteligência muito primária, mas às vezes suficiente para devorar seres humanos desesperados que deixam de raciocinar com clareza devido ao medo e ao cansaço. Paradoxalmente, é a própria inumanidade dos zumbis que faz com que eles persistam num caminho em que os humanos coadjuvantes (nunca os protagonistas, como em qualquer filme de terror) acabam falhando. O grande poder do zumbi é a sua persistência.
Assim como o robô é um duplo inorgânico e o vampiro é um duplo maligno, o zumbi é um duplo exclusivamente corporal. Bruce La Bruce, no filme Otto; or, Up with dead people, leva ao extremo a corporalidade do zumbi ao colocar os mortos-vivos para transar. Nesse pornô macabro, o morto devora os intestinos de um homem e depois mete o pau duro na barriga aberta. Os mortos comem duplamente.
George Romero, por sua vez, faz dos zumbis uma alegoria da sociedade de consumo ao filmá-los lado a lado com manequins de loja de roupa* no filme Madrugada dos mortos. No título original, Dawn of the dead, o tom apocalíptico é mais enfático: "dawn" é a alvorada. O pastor evangélico anuncia a nova era dizendo, talvez uma citação bíblica, que "quando os mortos não tiverem mais espaço no inferno, eles andarão entre os vivos". Na sequência de abertura da refilmagem de Madrugada dos mortos, Johnny Cash canta seu Apocalipse country "The man comes around" e se sucedem imagens de zumbis atacando, mas também de guerras e mesmo de manifestações de massa (como a imagem de uma mesquita cheia, com todas as pessoas se inclinando ao mesmo tempo para rezar). A sequência remete à primeira parte do filme Nossa música, de Godard, em que o espectador é bombardeado por cenas de destruição tanto de filmes de ficção quanto de registros históricos, a ponto de você não saber qual é qual e tudo o que resta é a própria destruição, intransitiva.
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(Escrevi isso lendo esse texto aqui e o título é da música dos Homophones)
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* Sylvia Plath escreveu o poema "Os manequins de Munique", parece que com menções aos campos de concentração nazistas.
A perfeição é horrível, ela não pode ter filhos.
Fria como o hálito da neve, ela tapa o útero
Onde os teixos inflam como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida.
Desprendendo suas luas, mês após mês,
sem nenhum objetivo.
O jorro de sangue é o jorro do amor,
O sacrifício absoluto.
Quer dizer: mais nenhum ídolo, só eu
Eu e você.
Assim, com sua beleza sulfúrica, com seus
sorrisos
Esses manequins se inclinam esta noite
Em Munique, necrotério entre Roma e Paris,
Nus e carecas em seus casacos de pele,
Pirulitos de laranja com hastes de prata
Insuportáveis, sem cérebro.
A neve pinga seus pedaços de escuridão.
Ninguém por perto. Nos hotéis
Mãos vão abrir portas e deixar
Sapatos no chão para uma mão de graxa
Onde dedos largos vão entrar amanhã.
Ah, essas domésticas janelas,
As rendinhas de bebê, as folhas verdes de confeito,
Os alemães dormindo, espessos, no seu insondável desprezo.
E nos ganchos, os telefones pretos
Cintilando
Cintilando e digerindo
A mudez. A neve não tem voz.