o ponto de partida crítico é o presente histórico
1.
O movimento feminista luta pela igualdade política entre homens e mulheres, partindo do pressuposto que às mulheres é relegado um papel secundário e subalterno no cotidiano. Em A dominação masculina, Pierre Bourdieu observa que o próprio corpo feminino é montado para conferir à mulher fragilidade e fraqueza: o salto ato, a bolsa a tiracolo, os brincos, a saia são elementos que limitam os movimentos da mulher, dificultando seus gestos, tolhendo-os e deixando-a disponível para o uso do homem. Para serem menos vulneráveis, os soldados raspam o cabelo, assim o inimigo tem um lugar a menos para prendê-los. Incapazes de correr e cheias de penduricalhos, as mulheres têm menos chance de resistir ao inimigo.
2.
Numa estrutura heteronormativa de pensamento, a dualidade "homem X mulher" é bélica, autocomplementar e absoluta. Nada existe fora dela, portanto também os conflitos se dão dentro dela. No movimento LGBT, é comum classificar a homofobia como uma forma específica de machismo: o gay não sofre violência por ser homem, mas por se associar simbolicamente à mulher; da mesma forma, a lésbica sofre violência por recusar seu papel de mulher submetida ao desejo do homem.
Mais do que revelar as razões da violência, esse tipo de explicação revela, quando analisamos seus pressupostos, que mesmo nas chamadas relações homoeróticas, entre pessoas do mesmo sexo, o binarismo "homem X mulher" é a medida de todas as réguas, o limite de ação e de pensamento de qualquer pessoa, independente da sua condição e do seu lugar.
3.
Judith Butler defende que esse binarismo é uma ficção totalizadora, na qual as relações de poder se dão e tendem a se manter. Assim, ao lutar pelos "direitos das mulheres", o feminismo parte do mesmo paradigma imperialista e excludente no qual se baseia a dominação masculina, ou seja, a divisão das pessoas em categorias "homem" e "mulher" e, nessas categorias, a divisão de poder e a instituição da hierarquia violenta. "Homem" e "mulher", argumenta Butler, são estilos, não identidades. Ser homem é ser um performer de práticas repetidas identificadas ao masculino, a tal ponto que se mantém, bruxuleante, uma constância de corpo que é socialmente apreendida como uma essência "homem". A masculinidade, então, não é um dado, mas um projeto. A tarefa que Butler propõe ao feminismo é
situar as estratégias de repetição subversiva facultadas por essas construções [de gênero], afirmar as possibilidades locais de intervenção pela participação precisamente nas práticas de repetição que constituem a identidade e, portanto, apresentar a possibilidade imanente de contestá-las.
Em outras palavras, não se trata de lutar pelos "direitos das mulheres", mas de subverter a própria categoria "mulheres" para, na política, lutar também pelos direitos do que essa categoria não abrange. Se a identidade é um efeito de práticas e discursos, ela não é determinada e/ou determinante da política, mas sim é, ela própria, o lugar da política. Cito a autora mais duas vezes:
Meu argumento é que não há necessidade de existir um "agente por trás do ato", mas que o "agente" é diversamente construído no e através do ato.
(...)
as condições que possibilitam a afirmação do "eu" são providas pela estrutura de significação, pelas normas que regulam a invocação legítima ou ilegítma desse pronome, pelas práticas que estabelecem os termos de inteligibilidade pelos quais ele pode circular.
4.
Quando eu sofro uma agressão, verbal ou física, por ser socialmente identificado como "gay", essa agressão não é dirigida a mim pessoalmente, embora ela me agrida pessoalmente. A agressão é dirigida ao indíviduo que atua, deliberada ou inadvertidamente, num campo performático-semântico identificado como subalterno. Funciona mais ou menos como o dispositivo visual do Exterminador do Futuro, que numa multidão identifica o objeto que deve ser exterminado.
Um homem que bate numa mulher está, ao mesmo tempo, agredindo um indivíduo e agredindo um estilo. Da mesma forma, um homem que bate em outro mais baixo, ou mais afeminado, ou mais gordo, ou negro, ou de qualquer modo marcado com algo que o identifique como alguém que foi feito para apanhar. Isso tem uma dupla face na medida em que pressupõe (pensando na matriz heteronormativa) que o homem foi feito para bater.
Esquecendo por um momento as especificidades de gênero que nos trazem a este problema, poderíamos pensar num binarismo mais abrangente, que seria o de "quem bate X quem apanha" dentro de uma relação específica e contingente, que produz uma relação um pouco mais permanente como campo simbólico.
5.
A questão é que eu quero que o meu direito de não ser agredido seja garantido pelo Estado. Os movimentos sociais de minorias discursivas (como o feminista, o negro e o LGBT) buscam garantir esse direito através de uma prática de institucionalização do discurso. Eu, como indivíduo particular e privado, não tenho direito algum no Estado. É apenas no momento em que eu me coloco como cidadão político (o eu da civitas, o eu da pólis), ou seja, como indivíduo público e comum, constituinte do e tutelado pelo Estado, que posso reivindicar o meu lugar de direito no cotidiano do Estado. Se o que me exclui do meu lugar de cidadão político é uma prática específica de corpo que me torna momentaneamente inelegível (eu, quando identificado como gay, me torno objeto de violência), Butler propõe justamente que essa prática - e, portanto, esse estilo - seja ressignificado, não para que eu adquira direitos como esse estilo, mas para que eu elimine a hierarquia das identidades ao mostrar que o não-gay também é um estilo e apenas um estilo.
Se tudo acontece no terreno da performance, Butler propõe a política como uma intervenção local, já que a performance e o discurso são o local da realidade. O "fato de uma identidade ser um efeito significa que ela não é nem inevitavelmente determinada nem totalmente artificial e arbitrária", portanto, se não nos é possível viver sem essas práticas discursivas (pois não existe um ser anterior à prática), o que podemos fazer é parodiar o discurso dominante e, assim, viver novas possibilidades discursivas.
6.
O desmanche da coisa pública - que percebemos (ou deixamos de perceber) particularmente no Brasil, com sua política teleológica proveniente do catolicismo português -, associado às políticas neoliberais, parece que faz do indivíduo a últma trincheira da coisa pública.
7.
Mas se a política é tradicionalmente associada ao masculino, e se os movimentos sociais se empenham em desapropriar a política desse campo simbólico e distribuir suas terras igualitariamente para todxs, quero saber onde ficam as práticas associadas ao feminino, ao menor, ao subalterno. Está claro (está bastante escuro) que o desejo-necessidade pela "melhoria de vida" está intrinsecamente relacionado com o desejo-necessidade pelos símbolos e lugares onde se alocam aquelxs que têm efetiva e atualmente as "melhores condições". Na independência haitiana, os negros escravizados tomaram o poder político e econômico da elite branca. Em Moçambique, o governo retirou os privilégios dos ex-colonos, igualando-os em direitos à população moçambicana. Nada disso me parece errado.
No entanto, não posso eu, macho forte e dominante, por outro lado também ser mulher?
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P.S.
O livro Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, no Brasil foi publicado terrivelmente pela Ed. Civilização Brasileira em 2003. A edição tem tantos problemas de revisão que chega até a dificultar o entendimento e faz a gente se perguntar (o que pode ser uma coisa boa, afinal desalienante do objeto-livro) se a tradução não está também nos passando a perna.
Uma entrevista legal com a Judith Butler pode ser lida aqui.