terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Sobre bibliotecas e livrarias

A biblioteca é um depósito de livros; a livraria, uma vitrine. Na biblioteca o livro é livro-arquivo, repositário de idéias e de intenções moralizantes; seu próprio estar-na-biblioteca transforma-o num fragmento de tradição: alguém está guardando alguma coisa para um outro alguém, quase sempre um desconhecido, que escolherá das prateleiras da biblioteca o seu quinhão de história. A livraria também está aberta ao livre-arbítrio do leitor, suas estantes também delimitam e fornecem caminhos. Mas na livraria o livro é livro-mercadoria: ele precisa ser visto, tocado e consumido. E não voltará mais: a livraria é um lugar sem pó.

O pó é um diferenciador de leituras. Um nariz sensível dificilmente se arriscaria a um mergulho mais prolongado entre os volumes quase mortos de uma biblioteca grande. Há bibliotecas que já estão abolindo o pó, transformando seus espaços de leitura em exposições de livros sensuais e iluminação exata. Ainda assim, emprestar um livro que já foi emprestado antes e que o será depois de você é a admissão da sujeira (os gordurosos dedos do corpo) na leitura mais clara que possa haver. Tem pessoas que limpam seus livros de biblioteca com uma flanela e em hipótese alguma o lêem sobre a cama. Devem ser as mesmas pessoas que se dirigem ao vendedor da livraria com um exemplar na mão e perguntam: "tem plastificado?".

Em O falecido Mattia Pascal, encontramos a personagem dentro de uma igreja abandonada que deveria ter virado biblioteca, mas que está mais para depósito de livros, sem as portas abertas que caracterizam as bibliotecas como espaços públicos (quase como as livrarias que, no entanto, por serem espaços também privados, podem selecionar ainda mais aqueles que passarão pelas suas portas automáticas). Mattia Pascal observa o Padre Pellegrinotto escalar as pilhas de livros da imensa coleção que o Monsenhor Boccamazza doou ao município e que foram "arrumados ao deus-dará, tal como vinham às mãos". A ordem é absolutamente necessária, seja à biblioteca ou à livraria. Nenhum desses dois lugares quer a surpresa ou o acaso. E, apesar do pó das bibliotecas, existe sempre um imperativo de limpeza para resguardar a unidade de cada volume de livro. Mas no caso da biblioteca municipal que o padre organiza, a ordem é só uma esperança elegante.


ADENDO

Estou lendo um livro muito legal que tem um trecho assim, ó:

O sebo já fora uma igreja. Agora era a igreja dos livros. Mas não são assim tantos os livros cedidos por outros que conseguimos folhear sem sentir uma certa náusea. Igual àquele poema que eu conheço, sobr sentar, ler um livro até o fim, depois fechá-lo e colocá-lo na estante, e quem sabe, sendo a vida curta como é, você acabe morrendo sem ter tido a chance de abrir o livro de novo, e suas páginas, suas páginas únicas, fechadas dentro do livro na estante, talvez nunca mais vejam a luz de novo

(Ali Smith, Garota encontra garoto, Companhia das Letras, 2009.)

2 comentários:

  1. e na biblioteca tem também o livro que fica fora do lugar
    simplesmente esquecido
    ou escondido por quem virá pegar depois


    *fui procurá-lo angustiado

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