quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Mal nenhum (2)

Mas vender livros pela rua, hoje, soa bobagem e muito fake. O fim das utopias, o sonho acabou, o nosso amor de hoje parece durar bem menos do que o nosso amor de ontem. Existe uma espécie de consenso quanto ao reacionarismo dos jovens (what the hell) hoje em dia, que nutrem uma nostalgia tímida pelo último regime militar e pela ordem social que ele promovia ou dizia promover. É um consenso também conservador esse, já que desconsidera os Comandos de Caça aos Comunistas e os próprios comunistas, a guerrilha urbana, que a martirização constante divulgada desde os anos 90 lapida justamente para fornecer a nostalgia dos anos de chumbo.

Aí acontece que sair pelas ruas hoje bancando o próprio trabalho nos soa demodê e, pior, desnecessário, visto que vivemos num país livre, com liberdade de imprensa, de expressão, de comércio, de vida - e ninguém precisa mais fazer nada sozinho, porque vai ter sempre uma empresa pública ou privada te patrocinando. O governo brasileiro (o Gil era ministro da Cultura!) quer a diversidade de vozes!

Sentado num bar na região da Av. Paulista, é com uma impressão de inconsequência política e de coragem lavada que eu vejo o Ricardo Carlaccio vender, a cinco reais, seus pocket books produzidos com um capricho gráfico fora de série, até mesmo sofisticado. Os livros de Carlaccio não têm nem cheiro de mimeógrafo, são lisos ao toque e limpos de olhar. Sua prosa é essencialmente bukowskiana, apresentando gângsteres, mendigos e prostitutas que circulam pelo centro estragado de São Paulo, bem longe da boemia leve que frequenta a fronteira dos Jardins. Balzaquiano bonito, simpático e bom de lábia, Carlaccio é o beijo da boca do luxo na boca do lixo, ou vice-e-versa, gingando entre as mesas com os exemplares na mão e anunciando pra gente como eu: "tou aqui divulgando o meu trabalho...".

É o máximo de risco que a gente consegue. Na livraria Cultura, que tem o maior acervo do país, pufes e carpetes te convidam a deitar entre as estantes pra ler hedonísticamente livros que brotam como frutos bons de uma árvore que nunca seca. Existe cada vez mais beleza e refinamento nesses desejos e é extremamente difícil se posicionar além disso, ou antes disso, ou contra isso. O tempo, esse que é gosma, uterino, mastiga incessantemente e digere tudo o que apontar pra fora de si. O que me incomoda é não conseguir vislumbrar outra coisa, outro jeito de ler, que não pareça piegas escapista ou radicalmente entranhado no que eu absolutamente não quero.

Faz muito tempo escrevi na parede do meu quarto, meio escondido, e de vez em quando vejo que está lá e leio:
A dissonância, naturalmente, é áspera, desagradável, exige de nós o esforço e a virtude. A virtude de se opor ao louvado, de parecer feio e desfigurado como os fracos.

Fico pensando na Simone Weil, na Hilda Hilst, no Pasolini. Todos nomes com maiúsculas, grifes intelectuais e o que eu puder tirar de dentro deles? De fora deles? Ler é muito perigoso. E eu gostaria de achar um jeito de ler além da compra. Gostaria? Meu partido é um coração partido.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Mal nenhum (1)

Comer pelas beiradas. Chama-se de "fatia" do mercado um grupo ("nicho") de pessoas prontas a consumir determinado produto. Como num bolo. Tem cada vez menos livrarias de bairro (desde sempre escassas) e mais megastores. Em Jundiaí (que fica no interior de São Paulo), havia a tradicional livraria D. Quixote, com uma loja grande ao lado da igreja matriz, onde há muito havia sofás, conforto e encontro dos leitores da cidade. Até chegarem a Nobel e a Saraiva, suas filiais.

Consta nos manuais escolares que a geração marginal dos anos 70 mimeografava seus poemas e vendia-os nas ruas pra driblar as circunscrições do mercado editorial brasileiro. Isso numa época em que o mercado estava só engatinhando, se comparado ao de hoje, quando as editoras proliferam feito gremlin pra otimismo dos entusiastas da "democratização da cultura". Sinal dos tempos, a Cosac publicou há pouco as obras completas do Chacal, inclusive com o "Preço da passagem" que, trinta anos atrás, Chacal vendia nos ônibus, pelo preço da passagem, pra bancar a passagem de ida dele para Londres.

Ana Cristina Cesar, eu acho, soube como ninguém captar o começo da estabilidade do mercado editorial brasileiro e jogar com isso a seu favor e pela sobrevivência do seu trabalho. Dizem que mesmo as edições independentes dela eram muito bem cuidadas, sempre um apreço pelo livro - que ela chamou de "meu filho", em A teus pés: "É prosa que dá prêmio".

A teus pés compila os volumes independentes anteriores num projeto que é uma grande sacada da editora Brasiliense nos anos 80. A coleção Cantadas Literárias apostava em escritores jovens provenientes, de certo modo, do desbunde da década anterior, escrevendo uma literatura aparentemente despretensiosa, pop, cheia de sexo fortuito e de praia. Os anos 80 foram basicamente uma década alegre, estreando com "Pro dia nascer feliz" e Ana C. publicando:

É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde).
Quando a memória está útil.
Usa. Agora é sua vez.
Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Sobre bibliotecas e livrarias

A biblioteca é um depósito de livros; a livraria, uma vitrine. Na biblioteca o livro é livro-arquivo, repositário de idéias e de intenções moralizantes; seu próprio estar-na-biblioteca transforma-o num fragmento de tradição: alguém está guardando alguma coisa para um outro alguém, quase sempre um desconhecido, que escolherá das prateleiras da biblioteca o seu quinhão de história. A livraria também está aberta ao livre-arbítrio do leitor, suas estantes também delimitam e fornecem caminhos. Mas na livraria o livro é livro-mercadoria: ele precisa ser visto, tocado e consumido. E não voltará mais: a livraria é um lugar sem pó.

O pó é um diferenciador de leituras. Um nariz sensível dificilmente se arriscaria a um mergulho mais prolongado entre os volumes quase mortos de uma biblioteca grande. Há bibliotecas que já estão abolindo o pó, transformando seus espaços de leitura em exposições de livros sensuais e iluminação exata. Ainda assim, emprestar um livro que já foi emprestado antes e que o será depois de você é a admissão da sujeira (os gordurosos dedos do corpo) na leitura mais clara que possa haver. Tem pessoas que limpam seus livros de biblioteca com uma flanela e em hipótese alguma o lêem sobre a cama. Devem ser as mesmas pessoas que se dirigem ao vendedor da livraria com um exemplar na mão e perguntam: "tem plastificado?".

Em O falecido Mattia Pascal, encontramos a personagem dentro de uma igreja abandonada que deveria ter virado biblioteca, mas que está mais para depósito de livros, sem as portas abertas que caracterizam as bibliotecas como espaços públicos (quase como as livrarias que, no entanto, por serem espaços também privados, podem selecionar ainda mais aqueles que passarão pelas suas portas automáticas). Mattia Pascal observa o Padre Pellegrinotto escalar as pilhas de livros da imensa coleção que o Monsenhor Boccamazza doou ao município e que foram "arrumados ao deus-dará, tal como vinham às mãos". A ordem é absolutamente necessária, seja à biblioteca ou à livraria. Nenhum desses dois lugares quer a surpresa ou o acaso. E, apesar do pó das bibliotecas, existe sempre um imperativo de limpeza para resguardar a unidade de cada volume de livro. Mas no caso da biblioteca municipal que o padre organiza, a ordem é só uma esperança elegante.


ADENDO

Estou lendo um livro muito legal que tem um trecho assim, ó:

O sebo já fora uma igreja. Agora era a igreja dos livros. Mas não são assim tantos os livros cedidos por outros que conseguimos folhear sem sentir uma certa náusea. Igual àquele poema que eu conheço, sobr sentar, ler um livro até o fim, depois fechá-lo e colocá-lo na estante, e quem sabe, sendo a vida curta como é, você acabe morrendo sem ter tido a chance de abrir o livro de novo, e suas páginas, suas páginas únicas, fechadas dentro do livro na estante, talvez nunca mais vejam a luz de novo

(Ali Smith, Garota encontra garoto, Companhia das Letras, 2009.)
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