Com vistas ao aniversário de 150 anos da unificação italiana, em Turim termina hoje um evento em que se está discutindo a democracia / as possibilidades democráticas / na unidade nacional. Na vaga dos acontecimentos, o suplemento literário do La Stampa publica matérias sobre as relações entre democracia e literatura.
Na matéria de capa, a afirmação de que a luta do escritor contra a opressão pode se dar, segundo a opinião de "muitos", de duas formas: uma, cívica; outra, estética. Na primeira forma, a literatura deveria representar a opressão e os modos que o oprimido possui para se libertar. Na segunda, a literatura deveria, através da linguagem po-é-ti-ca (ou seja, singular e maravilhas), ser o próprio ato de libertação da barbárie que é a nossa vulgar eloquência. E a matéria conclui que, na verdade, o papel da literatura contra a opressão deve ser cívico e estético, que uma coisa não faz muito sem a outra, vocês podem imaginar.
No caso da democracia / que é o que importa / a literatura deve atuar contra o populismo estético - pois este é um mal para a poesia e a inteligência das nações, assim como o populismo político é uma ameaça às instituições democráticas.
O Mia Couto, para mim, é todo o mistério do contemporâneo. Um homem branco com um emprego acadêmico (Mia é biólogo) escreve, num país em que não há editoras, histórias sobre povoados de analfabetos e diplomatas europeus, publicadas em livros que se tornam best-sellers na antiga metrópole e no atual império. E é uma pessoa com uma fineza de raciocínio sedutora e um sentimento de possibilidades de salvação que seria ingênuo se não fosse, do modo como ele o formula, tão evidente.
Talvez seja difícil mesmo entender uma escrita assim, lendo-a num país que nem na história oficial tem metade da auto-estima de Moçambique. Nas narrações de Mia Couto, o contexto político é sempre uma briga de crianças ricas que, embora audível o tempo todo, jamais toma a cena principal. É do outro lado que as coisas acontecem.
Quem cuspia na democracia, lá ao seu modo, era o Pasolini. A inteligência do Pasolini é oposta à do Mia Couto, porque o Pasolini tinha a capacidade de destruir a melhor das intenções - e não de revelá-la no que ela realmente tem de bom, só que não sabe. Um dos lances dele foi perceber uma licenciosidade das idéias cuja força motriz é o aburguesamento irreversível das minúcias. O campesinato acabou, ele dizia. E agora toda a vida é um modo de consumo.
Por falar nisso, acabou de chegar às lojas a edição nacional de Salò ou Os 120 dias de Sodoma, último filme do diretor e, cá do nosso modo, última fronteira de um tabu. O filme ficou proibido pela censura da ditabranda até o fim do governo Sarney (que já era democrático?) e permaneceu ainda por 20 anos fora de mercado, transmitido em cópias piratas e exibições lotadas de cineclubes. É um clássico, em suma.
Salò é baseado, como o próprio título diz, em Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade. Mas Pasolini ambienta a ação despótica sadeana na Itália fascista (embora seus fascistas se vistam como industriais milaneses dos anos 60, preste atenção). Aliás, a Iluminuras acaba de lançar tradução nova do Marquês: Os infortúnios da virtude. E é isso.
Na matéria de capa, a afirmação de que a luta do escritor contra a opressão pode se dar, segundo a opinião de "muitos", de duas formas: uma, cívica; outra, estética. Na primeira forma, a literatura deveria representar a opressão e os modos que o oprimido possui para se libertar. Na segunda, a literatura deveria, através da linguagem po-é-ti-ca (ou seja, singular e maravilhas), ser o próprio ato de libertação da barbárie que é a nossa vulgar eloquência. E a matéria conclui que, na verdade, o papel da literatura contra a opressão deve ser cívico e estético, que uma coisa não faz muito sem a outra, vocês podem imaginar.
No caso da democracia / que é o que importa / a literatura deve atuar contra o populismo estético - pois este é um mal para a poesia e a inteligência das nações, assim como o populismo político é uma ameaça às instituições democráticas.
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O Mia Couto, para mim, é todo o mistério do contemporâneo. Um homem branco com um emprego acadêmico (Mia é biólogo) escreve, num país em que não há editoras, histórias sobre povoados de analfabetos e diplomatas europeus, publicadas em livros que se tornam best-sellers na antiga metrópole e no atual império. E é uma pessoa com uma fineza de raciocínio sedutora e um sentimento de possibilidades de salvação que seria ingênuo se não fosse, do modo como ele o formula, tão evidente.
Talvez seja difícil mesmo entender uma escrita assim, lendo-a num país que nem na história oficial tem metade da auto-estima de Moçambique. Nas narrações de Mia Couto, o contexto político é sempre uma briga de crianças ricas que, embora audível o tempo todo, jamais toma a cena principal. É do outro lado que as coisas acontecem.
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Quem cuspia na democracia, lá ao seu modo, era o Pasolini. A inteligência do Pasolini é oposta à do Mia Couto, porque o Pasolini tinha a capacidade de destruir a melhor das intenções - e não de revelá-la no que ela realmente tem de bom, só que não sabe. Um dos lances dele foi perceber uma licenciosidade das idéias cuja força motriz é o aburguesamento irreversível das minúcias. O campesinato acabou, ele dizia. E agora toda a vida é um modo de consumo.
Por falar nisso, acabou de chegar às lojas a edição nacional de Salò ou Os 120 dias de Sodoma, último filme do diretor e, cá do nosso modo, última fronteira de um tabu. O filme ficou proibido pela censura da ditabranda até o fim do governo Sarney (que já era democrático?) e permaneceu ainda por 20 anos fora de mercado, transmitido em cópias piratas e exibições lotadas de cineclubes. É um clássico, em suma.
Salò é baseado, como o próprio título diz, em Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade. Mas Pasolini ambienta a ação despótica sadeana na Itália fascista (embora seus fascistas se vistam como industriais milaneses dos anos 60, preste atenção). Aliás, a Iluminuras acaba de lançar tradução nova do Marquês: Os infortúnios da virtude. E é isso.