As histórias do Livros das Mil e Uma Noites são todas engenhosas. Numa, o ifrit (eu não sabia, mas o gênio também tem um quê de demônio) que o pescador liberta de uma urna lacrada quer matar o pescador. "Mas por quê?!", pergunta o pescador, "se eu te salvei da prisão!". E o ifrit responde:
"Nos primeiros cem anos que eu fiquei preso nessa urna, eu pensava ai eu vou conceder todas as vontades de quem me livrar desta prisão. E nos primeiros cem anos ninguém me livrou da prisão. Nos mil anos seguintes, eu pensava ai eu vou conceder três desejos para quem me livrar desta prisão. E nos mil anos seguintes ninguém me livrou da prisão. Então, cheio de raiva, eu comecei a pensar ai eu vou matar com a pior das mortes quem me livrar desta prisão. Aí você apareceu, pescador, e me salvou. Por isso é absolutamente imperioso que você morra."
*
Acontece um monte de coisas, que eu não vou ficar contando agora. O pescador e o ifrit entram num duelo de argumentos mas, no Livro das Mil e Uma Noites, os argumentos são todos narrativos e, para convencer alguém a fazer o que você está pedindo, é necessário contar a história de um vizir invejoso que um dia disse ao rei que.
*
As histórias, muito mais numerosas que as noites, vão se fagocitando mutuamente, de modo que os personagens se multiplicam e chega um ponto em que você não reconhece mais um espaço narrativo delimitado, pois tudo se desenrola simultaneamente e as narrativas se cruzam como fios de um tapete louco, múltiplas e desordenadas.
*
O filme As Mil e Uma Noites, do Pasolini, é a recriação mais perfeita que pode existir dessa técnica narrativa.
*
Uma coisa, no entanto, me motivou a vir escrever aqui. Foi imaginar que essas estorinhas engenhosas que fazem pop-up pelo livro talvez não fossem tão impressionantes se não fosse a unidade que lhes dá Sherazade e seu ofício de adiar a execução à qual o rei quer submetê-la.
O rei, convencido de que é impossível que as mulheres sejam fiéis, resolve casar-se a cada dia com uma moça diferente e mandar matá-la assim que a manhã chegue.
Sherazade, pela contação de histórias que deixam o marido com mais curiosidade do que ódio, se empenha em acabar com a desgraça causada pela decisão do rei.
*
As estórias nelas mesmas lembrariam talvez algo como as fábulas de La Fontaine, que têm lá sua delícia, mas se esgotam assim que terminam. Entrecruzadas, no entanto, as narrativas de Sherazade causam microexplosões na ficção e, tão variadas, são como a telenovela que deixa a gente emocionada apreensiva divertida vivendo junto e sem querer que aquilo termine.
É muito bonita essa dimensão narrativa, essa função de dar movimento ao leitor. Ler as noites de Sherazade à noite pode ser um péssimo negócio. No livro, as personagens nunca dormem: Sherazade, sua irmã e o rei ficam até o amanhecer envolvidos pela história. Então levantam-se, vão ao dia e, ao retornarem ao quarto, a história prossegue de onde havia parado.
O sono é uma pequena morte, onde as luzes se apagam e a gente abre espaço pro desconhecido. No Livro das Mil e Uma Noites, tudo o que se faz é adiar a morte pela afirmação da capacidade de inventar. Não é preciso dormir, faz Sherazade, para sonhar. No filme de Pasolini um personagem sorri de alegria ao dizer
A verdade não está num só sonho, mas em muitos sonhos!
"Nos primeiros cem anos que eu fiquei preso nessa urna, eu pensava ai eu vou conceder todas as vontades de quem me livrar desta prisão. E nos primeiros cem anos ninguém me livrou da prisão. Nos mil anos seguintes, eu pensava ai eu vou conceder três desejos para quem me livrar desta prisão. E nos mil anos seguintes ninguém me livrou da prisão. Então, cheio de raiva, eu comecei a pensar ai eu vou matar com a pior das mortes quem me livrar desta prisão. Aí você apareceu, pescador, e me salvou. Por isso é absolutamente imperioso que você morra."
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Acontece um monte de coisas, que eu não vou ficar contando agora. O pescador e o ifrit entram num duelo de argumentos mas, no Livro das Mil e Uma Noites, os argumentos são todos narrativos e, para convencer alguém a fazer o que você está pedindo, é necessário contar a história de um vizir invejoso que um dia disse ao rei que.
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As histórias, muito mais numerosas que as noites, vão se fagocitando mutuamente, de modo que os personagens se multiplicam e chega um ponto em que você não reconhece mais um espaço narrativo delimitado, pois tudo se desenrola simultaneamente e as narrativas se cruzam como fios de um tapete louco, múltiplas e desordenadas.
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O filme As Mil e Uma Noites, do Pasolini, é a recriação mais perfeita que pode existir dessa técnica narrativa.
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Uma coisa, no entanto, me motivou a vir escrever aqui. Foi imaginar que essas estorinhas engenhosas que fazem pop-up pelo livro talvez não fossem tão impressionantes se não fosse a unidade que lhes dá Sherazade e seu ofício de adiar a execução à qual o rei quer submetê-la.
O rei, convencido de que é impossível que as mulheres sejam fiéis, resolve casar-se a cada dia com uma moça diferente e mandar matá-la assim que a manhã chegue.
Sherazade, pela contação de histórias que deixam o marido com mais curiosidade do que ódio, se empenha em acabar com a desgraça causada pela decisão do rei.
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As estórias nelas mesmas lembrariam talvez algo como as fábulas de La Fontaine, que têm lá sua delícia, mas se esgotam assim que terminam. Entrecruzadas, no entanto, as narrativas de Sherazade causam microexplosões na ficção e, tão variadas, são como a telenovela que deixa a gente emocionada apreensiva divertida vivendo junto e sem querer que aquilo termine.
É muito bonita essa dimensão narrativa, essa função de dar movimento ao leitor. Ler as noites de Sherazade à noite pode ser um péssimo negócio. No livro, as personagens nunca dormem: Sherazade, sua irmã e o rei ficam até o amanhecer envolvidos pela história. Então levantam-se, vão ao dia e, ao retornarem ao quarto, a história prossegue de onde havia parado.
O sono é uma pequena morte, onde as luzes se apagam e a gente abre espaço pro desconhecido. No Livro das Mil e Uma Noites, tudo o que se faz é adiar a morte pela afirmação da capacidade de inventar. Não é preciso dormir, faz Sherazade, para sonhar. No filme de Pasolini um personagem sorri de alegria ao dizer
A verdade não está num só sonho, mas em muitos sonhos!
você é surreal
ResponderExcluirQue bom ler você, Marcos.
ResponderExcluirobrigado, gente :)
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