Dois caminhos principais no trabalho: uma via seca e outra úmida. (A nomenclatura eu estou tirando do livro Tarô ou a arte de imaginar, de Alberto Cousté, p. 35, onde há a seguinte esquematização das vias de ação no mundo e de acesso ao conhecimento:
Via seca: Solar. Masculina. Racional. Conhecimento dedutivo. Extroversão. Ordem dórica.
Via úmida: Lunar. Feminina. Intuitiva. Conhecimento indutivo. Introversão. Ordem jônica.
Esquematismos à parte...)
João Lima Pinharanda observa que as modalidades de exposição da memória, em alheava, são "através de documentação objectiva (fotos, maquetas, plantas, textos de época) ou de recontares e rememorações subjectivas, sujeitos às alterações provocadas por estratégias de imagem e por lapsos discursivos fruto do próprio passar de tempo". Num primeiro momento, a gente pode dizer que a objetividade aparece numa caixa ou num mapa que, didaticamente, encenam o deslocamento físico de Moçambique a Portugal ou o deslocamento político de Portugal a Moçambique. Por outro lado, as "rememorações subjectivas" residiriam nas fotos de família, por exemplo.
Em "Fotografia: uma pequena suma", Susan Sontag identifica a fotografia ("a maneira inelutavelmente 'moderna' de ver") à frieza do fragmento da aparência. "Como somos modernos (e se temos o hábito de olhar fotos, somos modernos por definição), compreendemos que todas as indentidades são construções. A única realidade irrefutável - e nossa melhor pista para a identidade - é a aparência que as pessoas têm". E em outro trecho: "a fotografia não é uma espécie de agitação moral ou social, destinada a nos incitar a sentir e a agir, mas sim um projeto de notação. Olhamos, registramos, reconhecemos. Essa é uma maneira mais fria de olhar. É a maneira de olhar que identificamos como arte." Nessa concepção, portanto, a fotografia é o subjetivo de tal modo objetivado que sai dos caminhos intuitivos para se integrar à razão fraca (que é a razão moderna), que mesmo fraca não se funde à não-razão.
Não creio que Susan Sontag estivesse pensando nas fotos de família. Essas, ainda que passem pelos mesmos procedimentos básicos de qualquer fotografia, geralmente não se destinam à exposição pública. Mesmo quando mostradas numa festa, após uma exposição rápida elas voltam para o silêncio dos álbuns, que são guardados no escuro dos armários e é esse o lugar delas, o lugar que elas ocupam na memória de quem as tirou - diferentemente das fotografias profissionais que, mesmo guardadas no escuro, na intenção do fotógrafo estão alocadas em alguma parede à vista dos outros. Portanto as fotos de família estão baseadas especialmente no afeto. E, no afeto, a aparência não é "a única realidade irrefutável", mas certamente é uma das realidades irrefutáveis para a vivência do carinho e das saudades.
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Ao expôr publicamente suas fotos de família, um artista pode deslocar para o status de arte algo que, para os parentes e antepassados que tiraram aquelas fotos, deveria ter apenas um status afetivo. Hoje, essa é uma atitude bastante plausível, dado que a superexposição é o que dá estatuto de realidade ao indivíduo (vide Facebook) (lendo também Lipovetsky, "Narciso ou a estratégia do vazio").
Vendo, no entanto, o conjunto do projeto alheava, me parece que esse não é (o único?) o motivo das fotos. Isso quando se percebe que as duas vias - a seca/objetiva e a úmida/subjetiva - são, talvez, uma única via - de mão dupla. A documentação oficial, alojada num foco pessoal, transforma-se em rememoração afetiva. Nas nossas gavetas, junto com as fotos íntimas, estão a certidão de nascimento, a conta do banco, o panfleto entregue na esquina. A memória afetiva não é nada de menos. Vide as canções do Roberto.
Por outro lado, todo esse material trazido a público em registro de arte. Daí me ocorrem duas coisas: primeiro, a proposta de uma discussão política (histórica, estética, tudo isso é político também). Depois, o aceno para uma comunhão afetiva.
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olá amigo
ResponderExcluirmuito obrigado
pelas tuas palavras
abraço forte
msm