segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Tradução livre

Um amigo meu, latinista, me contou que no Brasil, do pouco que se traduz de textos clássicos, muito é repetido. Cada um quer deixar a sua tradução da Ilíada ou do raio que o parta. E pouca gente vai para o garimpo.

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Haroldo de Campos, no livro A arte no horizonte do provável, diz que a tradução que Hölderlin fez da Antígona de Sófocles era motivo de riso pra gente como Goethe e Schiller. Schelling (ao que tudo indica) escreveu

Se Sófocles tivesse falado a seus atenienses de maneira tão desgraciosa, emperrada e tão pouco grega, como é pouco alemã esta tradução, seus ouvintes teriam abandonado às carreiras o teatro.


Haroldo mostra que, mais tarde, gente como Benjamin e Brecht diria exatamente o contrário, louvando a tradução de Hölderlin no que ela tinha de poético, independente do que fosse inexato (que era a crítica que lhe faziam, o poeta não saber o grego). E Haroldo cita um outro alemão:

Nossas versões, mesmo as melhores, partem de um princípio falso. Pretendem germanizar o sânscrito, o grego, o inglês, em lugar de sanscritizar o alemão, greicizá-lo, anglizá-lo. Têm muito maior respeito pelos usos de sua própria língua do que pelo espírito da obra estrangeira... O êrro fundamental do tradutor é fixar-se no estágio em que, por acaso, se encontra sua língua, em lugar de submetê-la ao impulso violento que vem da língua estrangeira.


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O próprio Haroldo de Campos escreveu, mais de uma vez, que não se trata de descartar as traduções acadêmicas de conceitos esmerados, mas apenas de entender que a tradução poética trabalha em outros termos, que ele chama de transcriação. Nos passos de Hölderlin, Haroldo propõe que toda tradução poética seja uma recriação do poema original num outro poema, também este original, também ele semente da semântica, tão poema quanto o outro.

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O entusiasmo criativo, não sei se tanto do Haroldo quanto dos díscipulos que vivem por aí exaltando a pérola do poético do Parnaso, é um crivo, no entanto, talvez tão raso quanto o acadêmico.

Penso a partir do livro do Todorov, A literatura em perigo, em que ele escreve:

Uma concepção estreita da literatura, que a desliga do mundo no qual ela vive, impôs-se no ensino, na crítica e mesmo em muitos escritores. O leitor, por sua vez, procura nos livros o que possa dar sentido à existência. E é ele quem tem razão.

E também a partir da afirmação de João Adolfo Hansen. O entrevistador afirma que uma tradução feita por Alberto Mussa de poemas árabes tem "profundas idiossincrasias culturais, de um meio pastoril-arcaico e relações tribal-patriarcais e pensamento mágico-religioso, [que] afinal não se materializam numa linguagem poética que a torne suficientemente interessante para o leitor contemporâneo". Hansen responde:

Quanto ao que me diz sobre sua leitura dos poemas árabes, teríamos que discutir os regimes de historicidade da poesia. Aqui, justamente, acho que está o nó da questão da crítica. Não é possível lê-los considerando a historicidade deles como uma vantagem, não um ônus? Lê-los se despersonalizando num devir-árabe-pastoril-arcaico-mítico-religioso? Por que o presente tem que dar a última palavra sobre o interesse de algo estranho a ele? Porque é o único tempo real que temos?

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A tradução pode, talvez, ser um trabalho nem de atualização poética nem de precisão conceitual. Quem sabe se fosse apenas um ato de estima? É no que estou pensando.

Um comentário:

  1. “no poema, a sensação fala idealmente”

    Hölderlin, Sobre a diferença dos modos poéticos. Em Reflexões, Relume Dumará.

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