terça-feira, 17 de novembro de 2009

Os grandes colecionadores de mantras pessoais não saberão a metade

Do que eu conheço, o Rilke Shake é o melhor da literatura brasileira comercial dos últimos treze anos.

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É um livro coeso, em que não há poemas de sobra ou destoantes. Além disso, é um livro que, sozinho, inaugura um tom, uma dicção. A última vez que isso aconteceu foi com o A teus pés, em 82.

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dentadura perfeita, ouve-me bem:
não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas, chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?
dentinhos lindos, o boi que comes
ontem pastava no campo. e te queixaste
que a carne estava dura demais.
dura demais é a vida, dentadura perfeita.
mas come, come tudo que puderes,
e esquece este papo,
e me enfia os talheres.

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O Rilke shake tem um descompromisso. Acho que a palavra é essa.

Descompromisso é um termo inexistente no cânone brasileiro. Aí vem a Angélica e faz A poesia do descompromisso, alinha o blasê na tradição da grande poesia. Mas não é descaso. Dá risada.

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A arte moderna é essencialmente (estruturalmente) de ressentimento. Na literatura, o século XX se construiu sobre o estar-fora-de-lugar de Baudelaire e Kafka. Clarice Lispector, atestam as capas da Rocco, só interessa naquilo que a inclinação de uma cabeça tem de melancólico. E seria uma boa enumerar a constante do suicídio nos últimos cem anos, assim como da morte no que ela tem de sofrimento individual, e não de acontecimento público.

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Tem um lugar em que o Nietzsche diz que o excesso de consciência histórica causa embotamento da vida. Isso já no século XIX. Lembro agora da G.H., presa entre a barata e a porta, vendo do alto do seu apartamento a evolução das civilizações africanas.

No Rilke shake, não se trata de uma recusa da tradição intelectual. Mas de uma alternativa à decadência da civilização ocidental, alternativa que aparece em grande parte pela atenção à memória afetiva criada dentro da indústria cultural.


(Nunca estudei isso de "indústria cultural", nunca li Adorno, mas me parece que um livro de Gertrude Stein e um cd do Roberto Carlos, numa prateleira, gozem do mesmo estatuto de presunto.)

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r.c.

os grandes colecionadores de mantras pessoais não saberão a metade/ do que aprendi nas canções/ é verdade/ nem saberão/ descrever com tanta precisão/ aquela janela da bolha de sabão/ meu bem eu li a barsa/ eu li a britannica/ e quando sobrou tempo eu ouvi/ a sinfônica/ eu cresci/ sobrevivi/ a privada de perto/ muitas vezes eu vi/ mas a verdade é que/ quase tudo aprendi/ ouvindo as canções do rádio/ as canções do rádio/ quando meu bem nem/ a verdadeira maionese/ puder me salvar/ você sabe onde me encontrar/ e se a luz faltar/ num cantinho do meu quarto/ eu vou estar/ com um panasonic quatro pilhas AAA/ ouvindo as canções do rádio

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