domingo, 15 de novembro de 2009

Drummond prolixo

Um poema como

Cota zero

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

(em Alguma poesia, de 1930)

é raridade nos livros de Drummond. Essa concisão de piada, que aparece uma ou duas vezes no Alguma poesia, parece que só vai reaparecer no Lição de coisas, de 1962, no qual é evidente a influência da poesia concreta. Nesse livro também está o primeiro movimento de retração macropolítica da poesia de Drummond, que, na parte "Memória", já antecipa um pouco do que será o Boitempo.

O sátiro

Hildebrando insaciável comedor de galinha.
Não as comia propriamente - à mesa.
Possuía-as como se possuem
e se matam mulheres.

Era mansueto e escrevente de cartório.

(em Lição de coisas)


*

Numa aula, o professor Alcides Villaça contou que, quando foi lançado o Boitempo, em 1968, ele esperava ansiosamente por uma poesia engajada, um novo A rosa do povo. Era o primeiro livro de poemas inéditos de Drummond desde 1962 e, consequentemente, desde o golpe militar de 1964.

Ler Boitempo, portanto, foi decepção e indignação. No ano do AI-5, o poeta afrouxava e ia falar do sítio, da infância, das coisas miúdas.

*

A rosa do povo é o Momento Grandioso da poesia drummondiana. Publicado em 1945, ano do fim do Estado Novo, diz-se que o livro já circulava clandestinamente entre intelectuais e artistas, escondido da ditadura de Getúlio Vargas. É um livro que canta a afirmação do mundo melhor, da transformação social que está em curso e resultará na realização da utopia socialista.

*

No entanto, sempre cientes do limite do alcance (Drummond tem Saturno domiciliado em Capricórnio, em sextil com o Ascendente. [Fonte]), os poemas de A rosa do povo não encenam a glorificação didática que era comum no pensamento e na literatura de esquerda, afins ao realismo soviético, e que vai aparecer com muita força em alguns poemas de Dentro da noite veloz, de Ferreira Gullar (1975).

Em A rosa do povo, os olhos "são pequenos para ver / o mundo que se esvai em sujo e sangue, / outro mundo que brota, qual nelumbo

- mas vêem". O ser humano, bicho da terra tão pequeno, minúsculo perto da enormidade da destruição e da vida que se agita, não consegue nunca se fazer deus ou, junto com seus irmãos, formar uma harmonia coreografada de musical hollywoodiano. Mas ele tem olhos e vê. Todo coração é uma célula revolucionária.

***

Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.

Essa viagem é mortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

***

Esse é o livro dos poemas longos, de versos longos. O tom épico envolve as palavras pela duração epopeica dos poemas, mas também pela sintaxe prosaica. Drummond escreve, sem floreios, poemas com a sintaxe corriqueira do português.

Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.

Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
Talvez a linha do busto,
da perna, talvez do ombro.

Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro, menino, choro.

7 comentários:

  1. asc sol e lua
    em escorpião.

    %

    ontem eu achei que disconcordava das coisas que c tá dizendo

    mas o problema é justamente q eu concordo e acho concordável

    e o poeta do finito e da matéria pra mim é águia

    eu olho
    que lindo
    mas não sei falar (ainda?) não.

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  2. o que eu tb tou dizendo é que a usp acabou com o drummond

    #

    é claro q'eu ainda vou tentar
    escrever sobre ou com

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  3. assim.

    eu gostaria de ler Drummond como quem acabou de chegar. estava lavando louça pensando nisso. se é possível ler Clarice, Drummond, Rosa, como quem acabou de chegar. sem história, discurso.

    não sei se é possível?

    ou pelo menos me descolar disso. e pro drummond eu também teria que me deslocar da minha experiência dele ser deus.


    quando eu digo que vou demorar pra escrever sobre Drummond é porque não quero escrever.


    é claro que a USP não acabou com ele, claro que não.



    e eu tava mais falando da USP do que do Drummond no que eu disse.

    eu acho que a USP ensinou muita gente a pensar e a ler. e a escrever.

    isso porque

    tava sugerindo pro meu pai ontem que em vez dele ler o naturalismo contemporâneo (é assim que ele tem chamado os romances que lê) no Brasil de "decadência depois da experiência", que é já minar o campo pra baixo, né? ele poderia tentar pensar objetivando como é que esse tipo de escrita "da clareza" foi sendo construída e valorizada como cânone no Brasil.

    então ele fiat lux que é coisa que vem do século XIX, ele me disse. que tem um texto do Benedito Nunes que fala disso.


    *

    quanto ao Drummond

    acho que a USP minou a minha escrita sobre Drummond

    em fazer do Drummond o cânone e o cânone se fazer por ele, pela leitura dele.

    o modernismo/ a política/ a fazenda.


    "A rosa do povo" ser "o Momento Grandioso" da poesia dele.


    eu acho que o buraco é mais embaixo. que sim, esses são buracos, mas há outros.



    *

    pra começar eu acho que não dá pra pensar "A rosa do povo" separado do "Sentimento do Mundo" ou do "José". são livros da guerra. são livros de guerra.


    quer dizer, dá dá, né, porque dá pra pensar um verso em separado e só. uma palavra. "mundo". etc

    *

    enfim.

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  4. é, quando eu comecei a escrever eu queria só investigar essa sensação anticoncisão que o drummond sempre me dá. aí eu vi que era uma sensação muito por causa do A rosa do povo. E eu acabei não enfatizando, como queria, que nessa chave esse livro é emblemático de todas as publicações que vão do Brejo das Almas até o Lição de Coisas.

    *

    mas eu dei uma paunocuzada e didatiquei. Até pra mim mesmo, mas né.

    *

    não acho que dê pra ler como quem acabou de chegar, não. Mas o que deve dar pra fazer - e não será divertido? :D - é derrubar pra ver de perto.

    Acho que faz muito sentido aquilo que a gente tava falando em janeiro do Drummond e do Machado: narrativas de si. Não psicanalizando a coisa, mas religando à experiência - o sangue da experiência. Esses dois escreveram o mundo todo, mas não são políticos, né. O discurso do político-profissional é apaziguador, mas o do escritor não. Por mais que o Drummond esteja lá entusiasmado com o fim da guerra e tal. Ele nunca foi moderno. Só em alguns poemas do Alguma poesia, acho.

    *

    acho que esse "naturalismo contemporâneo" bebe muito no Drummond. Mas é o que eu estou percebendo - e isso na poesia, principalmente, embora eu ache que o foco esteja mudando - que é um naturalismo capenga. (Agora estou identificando "naturalismo" com "épico", todas as aspas). Enquanto o Drummond, em A rosa do povo, falava grande e usava todas as palavras, o pessoal dos anos 90 pra cá quer falar grande e usar cada vez menos palavras, uma dicção minimalista chupim-haikai pra tratar da máquina do mundo. Quer dizer, o cacete que é "a máquina do mundo" do mundo, vira só o que interessa pra poesiasinha de fonemas. Não que isso não possa dar poesia de verdade. Mas não deu. Só versos chatos políticos raquíticos sifilíticos...

    *

    o Drummond é um buraco negro, né?

    *

    Mas me diz: o que você acha da palavra "mundo"?

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  5. http://camposcarvalhoscapins.blogspot.com/2009/11/mundo.html

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  6. é.

    temos que falar muito nisso tudo que você disse, concordo.

    mas não tou muito pra palavras agora.

    daqui a pouco, depois que eu comer, ou depois que eu dormir, respondo mais.

    mas queria responder a pergunta agora, da primeira resposta que me veio na cabeça.

    acho que ele opõe Mundo e Morte. e faz um comer o outro dentro de si. já que morrer é tão definitivo que não dá, vamos ao mundo. já que o mundo é tão impossível como é, vamos lembrar da morte. e no meio o amor, o sorriso, a dor e a flor.

    por aí.

    beijo.

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