Se temos uma tradição e queremos fazer algo de novo dentro dela, não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este conhecimento que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo e coerente com ela. Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação
Caetano Veloso, 1966
Toda geração tem que, num pequeno espaço de tempo, arrodeada por uma relativa obscuridade, compreender seu tempo pra fazer a antítese dela.
"E os mortos voltarão à vida", exclamou o xamã na noite, e seu grito ecoou e foi ouvido. O céu estava particularmente belo, em tons arroxeados com nuvens esparsas e finas fatiando a lua.
E havia o medo. Havia o medo em todos os cantos. Hoje em dia, os homens temem bobagens; outrora, temiam a noite e a morte. Não importava a arma no coldre.
"Exclamou na noite", "o céu belo", "a marquesa aceitou o chá", "E havia o medo. Havia o medo". Nas primeiras linhas a gente percebe: é uma paródia, uma emulação de faroeste. Isso a capa já havia dito. Eu é que começo cada livro esperando encontrar X Grande Escritorx da Minha Geração.
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Depois de poucas horas, já havia lido mais da metade do romance. "É um nada", pensei. Em nenhum momento levantei os olhos do livro para estranhar as palavras.
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Ao final da leitura, percebi que estava me divertindo. Apesar de nos últimos capítulos o livro assumir de vez um recurso didático de ficar se justificando, se explicando à guisa de metalinguagem, coisa que aparece no livro inteiro. Mas eu me divertindo.
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Me ocorreu que, não só na poesia, mas também na prosa. Diversão tem sido uma constante. Pensei na presença do folhetim no século XIX. Alexandre Dumas, José de Alencar. A "alta literatura" produzindo entretenimento.
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Se o buraco negro é o paradigma da leitura. Perder-se no vácuo. Uma literatura da alienação, a grande do século XX? Kafka, Lispector, Faulkner. Mesmo noutra linha. Bukowski, por exemplo. Alguém sempre te chuta as muletas.
Agora: não será também isso datado? Essa uma literatura netunoplutoniana, talvez uraniana (netuno as névoas, plutão a morte, urano a ruptura, os três planetas descobertos de 1781 pra cá). E agora, Plutão deixando de ser planeta, nós num tempo sem profundidade escura (o blablá do pós-moderno).
No entanto Dumas, Alencar. Saint-Clair das Ilhas. E "literatura" é um conceito romântico. Dante não tinha interioridade freudiana. Até o século XVIII, em grande parte, o que hoje a gente chama de literatura era reprodução de gêneros. A crítica é descritiva, a poética era prescritiva.
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Não sei.
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Divertido, sim, o Areia nos dentes. Isso é um problema?
A premissa de que a literatura, desde o fim do século XIX, encena um derrotismo do sujeito. Procede? Uma falha absoluta da existência, vanidade. O não-autor que não-diz.
Ou isso é invenção da crítica? Será que é a crítica literária que, desde os anos 1940, empreendeu esse projeto de literatura desencantada?
Será que isso é um projeto político de apatia?
2.
O suicídio é uma atitude extrema. Que personagens de romances / que poemas encenam o suicídio? Clarice Lispector, num conto (acho que de A bela e a fera), a personagem-narradora conversando com um homem que pensa em se matar diz que não nos é permitido o suicídio, que o nosso dever é querer viver.
Na minha adolescência, Clarice Lispector era sinônimo de autoaniquilação. Era assim que a gente lia.
Os sofrimentos do jovem Werther é de 1774. Todo o romantismo emo oitocentista é evocado pelos adolescentes góticos que curtem cemitério, aquela necrofilia do Álvares de Azevedo. Mas aí acho que o suicídio é mais alegórico.
O suicídio de Sylvia Plath e de Ana Cristina Cesar, como fato, têm muito mais força e veracidade.
Sylvia Plath particularmente. Sua obra é considerada suicida. Em A redoma de vidro, espécie de autobiografia (o que é autobiografia?), a personagem principal é uma suicida frustrada. Assim como o eu-lírico de "Lady Lazarus".
No entanto, Ariel. Quando Plath morreu, deixou o livro pronto. Ted Hughes editou-o. Sua alteração mais significativa foi a inclusão, como último poema do livro, de "Edge", talvez o último poema escrito por Plath.
Beira
A mulher está perfeita.
Morto, seu
Corpo veste o sorriso da conquista,
A ilusão de uma Grega necessidade
Escorre nos cortes de sua toga,
Nus, seus
Pés parecem dizer:
Viemos tão longe. Acabou-se.
Cada filho morto encolhido, cobra branca,
Um em cada pequena
Tigela de leite, agora vazia.
Ela os dobrou
De volta ao seu corpo como pétalas
De uma flor que fecha quando o jardim
Espeta e odores sangram
Da funda e doce garganta da dama da noite.
A lua não tem porque ficar triste,
Atenta com seu chapéu de osso.
Ela sabe como funcionam essas coisas.
O escuro dela quebra e draga.
Cerca de vinte anos depois, Ariel foi republicado, agora como o tinha planejado Sylvia Plath. O último poema é "Wintering", o inverno. O poema fala sobre mel e seu último verso é
The bees are flying. They taste spring.
"As abelhas voam. Saboreiam primavera." E Plath dedica Ariel a seus filhos.
3.
O suicídio não é apático. A melancolia é.
Mesmo na arte pop: a Marilyn de Andy Warhol é uma paródia melancólica, não afirmativa. Como a música de Tom Zé, "a Brigitte Bardot está ficando velha / envelheceu antes dos nossos sonhos". Marylin já tinha morrido quando Warhol reproduziu seu rosto.
4.
A música pop, no entanto. A música disco é afirmativa: "I am what I am", "I will survive", "Hey boy, there's no need to feel down", "I've got all my sisters with me".
Na literatura, a alegria? Só consigo pensar no Guimarães Rosa. Como uma alegria que não passa pelo filtro do cinismo ou da ironia. A visão do peru no quintal, a de uma árvore enorme. Logo depois, a morte. Mas não é uma morte de derrota, porque não é racional. É o menino que vê a morte, aprende com a morte, mas ele vive a morte com seu corpo fresco de menino, como uma surpresa, não uma fatalidade. Olha o menino, ui ui ui.
Na música é mais fácil encontrar essa atitude. Caetano Veloso. Alegria e generosidade.
5.
O que é mais difícil encontrar na música pop é o suicídio. Os astros da música geralmente esgotam a vida. Janis Joplin, Cazuza. Mesmo Kurt Cobain não cantava o derrotismo. "Eu sou tão feio, mas tudo bem / Você também, a gente quebra os espelhos. // Manhã de domingo é todo dia / E eu não ligo, não tenho medo".
O suicídio aparece nessa música aí debaixo.
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender
6.
O pop destes últimos anos. Girls just wanna have fun. Lady Gaga parodia e homenageia o kitsch. É quase tropicalista (kkkkkkkkkk). Será legal ler o Rilke Shake vendo um show da Lady Gaga?
Dois caminhos principais no trabalho: uma via seca e outra úmida. (A nomenclatura eu estou tirando do livro Tarô ou a arte de imaginar, de Alberto Cousté, p. 35, onde há a seguinte esquematização das vias de ação no mundo e de acesso ao conhecimento:
Via seca: Solar. Masculina. Racional. Conhecimento dedutivo. Extroversão. Ordem dórica. Via úmida: Lunar. Feminina. Intuitiva. Conhecimento indutivo. Introversão. Ordem jônica.
Esquematismos à parte...)
João Lima Pinharanda observa que as modalidades de exposição da memória, em alheava, são "através de documentação objectiva (fotos, maquetas, plantas, textos de época) ou de recontares e rememorações subjectivas, sujeitos às alterações provocadas por estratégias de imagem e por lapsos discursivos fruto do próprio passar de tempo". Num primeiro momento, a gente pode dizer que a objetividade aparece numa caixa ou num mapa que, didaticamente, encenam o deslocamento físico de Moçambique a Portugal ou o deslocamento político de Portugal a Moçambique. Por outro lado, as "rememorações subjectivas" residiriam nas fotos de família, por exemplo.
Em "Fotografia: uma pequena suma", Susan Sontag identifica a fotografia ("a maneira inelutavelmente 'moderna' de ver") à frieza do fragmento da aparência. "Como somos modernos (e se temos o hábito de olhar fotos, somos modernos por definição), compreendemos que todas as indentidades são construções. A única realidade irrefutável - e nossa melhor pista para a identidade - é a aparência que as pessoas têm". E em outro trecho: "a fotografia não é uma espécie de agitação moral ou social, destinada a nos incitar a sentir e a agir, mas sim um projeto de notação. Olhamos, registramos, reconhecemos. Essa é uma maneira mais fria de olhar. É a maneira de olhar que identificamos como arte." Nessa concepção, portanto, a fotografia é o subjetivo de tal modo objetivado que sai dos caminhos intuitivos para se integrar à razão fraca (que é a razão moderna), que mesmo fraca não se funde à não-razão.
Não creio que Susan Sontag estivesse pensando nas fotos de família. Essas, ainda que passem pelos mesmos procedimentos básicos de qualquer fotografia, geralmente não se destinam à exposição pública. Mesmo quando mostradas numa festa, após uma exposição rápida elas voltam para o silêncio dos álbuns, que são guardados no escuro dos armários e é esse o lugar delas, o lugar que elas ocupam na memória de quem as tirou - diferentemente das fotografias profissionais que, mesmo guardadas no escuro, na intenção do fotógrafo estão alocadas em alguma parede à vista dos outros. Portanto as fotos de família estão baseadas especialmente no afeto. E, no afeto, a aparência não é "a única realidade irrefutável", mas certamente é uma das realidades irrefutáveis para a vivência do carinho e das saudades.
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Ao expôr publicamente suas fotos de família, um artista pode deslocar para o status de arte algo que, para os parentes e antepassados que tiraram aquelas fotos, deveria ter apenas um status afetivo. Hoje, essa é uma atitude bastante plausível, dado que a superexposição é o que dá estatuto de realidade ao indivíduo (vide Facebook) (lendo também Lipovetsky, "Narciso ou a estratégia do vazio").
Vendo, no entanto, o conjunto do projeto alheava, me parece que esse não é (o único?) o motivo das fotos. Isso quando se percebe que as duas vias - a seca/objetiva e a úmida/subjetiva - são, talvez, uma única via - de mão dupla. A documentação oficial, alojada num foco pessoal, transforma-se em rememoração afetiva. Nas nossas gavetas, junto com as fotos íntimas, estão a certidão de nascimento, a conta do banco, o panfleto entregue na esquina. A memória afetiva não é nada de menos. Vide as canções do Roberto.
Por outro lado, todo esse material trazido a público em registro de arte. Daí me ocorrem duas coisas: primeiro, a proposta de uma discussão política (histórica, estética, tudo isso é político também). Depois, o aceno para uma comunhão afetiva.
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esta é uma aproximação gradativa do trabalho alheava.
Do que eu conheço, o Rilke Shake é o melhor da literatura brasileira comercial dos últimos treze anos.
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É um livro coeso, em que não há poemas de sobra ou destoantes. Além disso, é um livro que, sozinho, inaugura um tom, uma dicção. A última vez que isso aconteceu foi com o A teus pés, em 82.
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dentadura perfeita, ouve-me bem:
não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas, chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?
dentinhos lindos, o boi que comes
ontem pastava no campo. e te queixaste
que a carne estava dura demais.
dura demais é a vida, dentadura perfeita.
mas come, come tudo que puderes,
e esquece este papo,
e me enfia os talheres.
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O Rilke shake tem um descompromisso. Acho que a palavra é essa.
Descompromisso é um termo inexistente no cânone brasileiro. Aí vem a Angélica e faz A poesia do descompromisso, alinha o blasê na tradição da grande poesia. Mas não é descaso. Dá risada.
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A arte moderna é essencialmente (estruturalmente) de ressentimento. Na literatura, o século XX se construiu sobre o estar-fora-de-lugar de Baudelaire e Kafka. Clarice Lispector, atestam as capas da Rocco, só interessa naquilo que a inclinação de uma cabeça tem de melancólico. E seria uma boa enumerar a constante do suicídio nos últimos cem anos, assim como da morte no que ela tem de sofrimento individual, e não de acontecimento público.
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Tem um lugar em que o Nietzsche diz que o excesso de consciência histórica causa embotamento da vida. Isso já no século XIX. Lembro agora da G.H., presa entre a barata e a porta, vendo do alto do seu apartamento a evolução das civilizações africanas.
No Rilke shake, não se trata de uma recusa da tradição intelectual. Mas de uma alternativa à decadência da civilização ocidental, alternativa que aparece em grande parte pela atenção à memória afetiva criada dentro da indústria cultural.
(Nunca estudei isso de "indústria cultural", nunca li Adorno, mas me parece que um livro de Gertrude Stein e um cd do Roberto Carlos, numa prateleira, gozem do mesmo estatuto de presunto.)
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r.c.
os grandes colecionadores de mantras pessoais não saberão a metade/ do que aprendi nas canções/ é verdade/ nem saberão/ descrever com tanta precisão/ aquela janela da bolha de sabão/ meu bem eu li a barsa/ eu li a britannica/ e quando sobrou tempo eu ouvi/ a sinfônica/ eu cresci/ sobrevivi/ a privada de perto/ muitas vezes eu vi/ mas a verdade é que/ quase tudo aprendi/ ouvindo as canções do rádio/ as canções do rádio/ quando meu bem nem/ a verdadeira maionese/ puder me salvar/ você sabe onde me encontrar/ e se a luz faltar/ num cantinho do meu quarto/ eu vou estar/ com um panasonic quatro pilhas AAA/ ouvindo as canções do rádio
é raridade nos livros de Drummond. Essa concisão de piada, que aparece uma ou duas vezes no Alguma poesia, parece que só vai reaparecer no Lição de coisas, de 1962, no qual é evidente a influência da poesia concreta. Nesse livro também está o primeiro movimento de retração macropolítica da poesia de Drummond, que, na parte "Memória", já antecipa um pouco do que será o Boitempo.
O sátiro
Hildebrando insaciável comedor de galinha.
Não as comia propriamente - à mesa.
Possuía-as como se possuem
e se matam mulheres.
Era mansueto e escrevente de cartório.
(em Lição de coisas)
*
Numa aula, o professor Alcides Villaça contou que, quando foi lançado o Boitempo, em 1968, ele esperava ansiosamente por uma poesia engajada, um novo A rosa do povo. Era o primeiro livro de poemas inéditos de Drummond desde 1962 e, consequentemente, desde o golpe militar de 1964.
Ler Boitempo, portanto, foi decepção e indignação. No ano do AI-5, o poeta afrouxava e ia falar do sítio, da infância, das coisas miúdas.
*
A rosa do povo é o Momento Grandioso da poesia drummondiana. Publicado em 1945, ano do fim do Estado Novo, diz-se que o livro já circulava clandestinamente entre intelectuais e artistas, escondido da ditadura de Getúlio Vargas. É um livro que canta a afirmação do mundo melhor, da transformação social que está em curso e resultará na realização da utopia socialista.
*
No entanto, sempre cientes do limite do alcance (Drummond tem Saturno domiciliado em Capricórnio, em sextil com o Ascendente. [Fonte]), os poemas de A rosa do povo não encenam a glorificação didática que era comum no pensamento e na literatura de esquerda, afins ao realismo soviético, e que vai aparecer com muita força em alguns poemas de Dentro da noite veloz, de Ferreira Gullar (1975).
Em A rosa do povo, os olhos "são pequenos para ver / o mundo que se esvai em sujo e sangue, / outro mundo que brota, qual nelumbo
- mas vêem". O ser humano, bicho da terra tão pequeno, minúsculo perto da enormidade da destruição e da vida que se agita, não consegue nunca se fazer deus ou, junto com seus irmãos, formar uma harmonia coreografada de musical hollywoodiano. Mas ele tem olhos e vê. Todo coração é uma célula revolucionária.
***
Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.
***
Esse é o livro dos poemas longos, de versos longos. O tom épico envolve as palavras pela duração epopeica dos poemas, mas também pela sintaxe prosaica. Drummond escreve, sem floreios, poemas com a sintaxe corriqueira do português.
Quando a gente fala em "poesia de uma época", há uma questão que antecede a própria poesia, que é a seleção que fazemos do que vamos considerar "poesia" e relevante como tal.
Isso é a especificidade e o ônus de qualquer leitura geracional.
E tem também que o que a gente quer é a brasa na nossa sardinha.
*
Mas então.
Esses dias eu percebi homogeneidades nas minhas referências.
*
Do final dos anos 70 e começo dos 80 no Brasil, o que a gente escolhe hoje é a chamada poesia marginal, ou geração mimeógrafo, ou geração do desbunde. Poetas que circularam pelo Rio de Janeiro e talvez por São Paulo entranharam o tropicalismo como poética e, na tradição do modernismo de Oswald de Andrade, o humor como método.
Esse rasga-coração vai dar frutos tão maduros quanto a Ana Cristina Cesar, que faz lirismo de televisão, e o Paulo Leminski, que faz rockstar do poema.
*
Nos anos 90, no entanto, a poesia mainstream bebe da obsessão formalista à Haroldo de Campos, dos impulsos épicos de Drummond e João Cabral e do acanhado melancólico de um Manuel Bandeira. Disso aparece uma dicção que, se eu fosse o Antonio Candido nos anos 40, eu diria "pouco viril".
Todo mundo está preocupado, então, com os insondáveis da linguagem o deslocamento do poeta no mundo contemporâneo ao mesmo tempo em que faz uma poesia de concisão que pretensamente deve se autobastar.
O épico no lírico sem épico sem lírico.
Drama.
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A galera que está sendo eleita hoje como a boa nova jovem poesia pela mídia dá risada dessa pretensão poética.
O ponto em comum com a poesia marginal talvez seja só o humor. Mas é um humor de outro modo, mais cínico e cético.
Ponto em comum com a poesia dos anos 90 são as referências literárias. Que são evocadas com certo descaso. Na verdade é mais uma briga com a Grande Poesia do que uma devoção solene às suas conquistas verbivocovisuais. O ponto em comum então, se é que existe, é mais temático, e não de método.
na banheira com gertrude stein
gertrude stein tem um bundão chega pra lá gertude
stein e quando ela chega pra lá faz um barulhão como
se alguém passasse um pano molhado na vidraça
enorme de um edifício público
gertrude stein daqui pra cá é você o paninho de lavar
atrás da orelha é todo seu daqui pra cá sou eu o patinho
de borracha é meu e assim ficamos satisfeitas
mas gertrude stein é cabotina acha graça em soltar pum
debaixo d’água eu hein gertrude stein? não é possível
que alguém goste tanto de fazer bolha
e aí como a banheira é dela ela puxa a rolha e me rouba
O verdadeiro descaso é com os cânones e a posição cânonica dxs Grandes Poetas. Legal que esta é uma geração extremamente escolarizada, jovenzinhos de classe média que cresceram num país em que se falou muito em democratização e, especialmente, democratização do ensino. E que escrevem dando de ombros às instituições.
(Me ocorreu agora que o hip hop não tem registro de humor. É só reparar na molecada de periferia vestida de rapper. Os meninos, principalmente. O próprio gingado da caminhada simula que se carrega um peso. A classe social também é um fator geracional.)
*
adendo: esse poema da Bruna Beber é bastante citado por aí. Pra analisar a poesia contemporânea, mais legal acho que era analisar as reportagens que têm sido feitas sobre a poesia contemporânea. A leitura deste post vai por aí, especialmente na seleção dos poemas. Bom observar também que tem toda uma mancomunação implícita entre as editoras, os jornais, quero dizer, uma sardinha lava a outra. Legal também seria fazer um recorte geracional contra isso. Mas, ao mesmo tempo, tem também que eu não posso simplesmente fingir que nada me afeta e que eu não gosto desse tom isento e pueril dos poemas de hoje. Então bora fazer a nossa antítese.
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(Nota mental: e a prosa nesses termos? Deve ser divertido pensar no estrago que a Clarice Lispector fez na literatura séria, tudo quanto é contista e romancista atribulado com angústias interiores.)
Lá pra 2002, era uma pauta bastante comum dos suplementos culturais se o blogue pode ser considerado literatura ou não. E dá-lhe entrevista com a Clarah Averbuck, que na época estava estourando com o brazileira!preta e lançava o primeiro livro, Máquina de Pinball, com textos que em grande parte tinha surgido do blogue dela.
Hoje as pautas são outras, se o livro digital vai acabar com o livro impresso, a chatice é a mesma. E os blogues, como você bem sabe, já não são mais novidade e blablablá.
*
Ana Cristina Cesar profetizou o blogue. Com seus diários inventados, "jazz do coração". O blogue, em princípio, era um diário publicado.
18 de fevereiro
Me exercitei muito em escritos burocráticos, cartas de recomendação, anteprojetos, consultas. O irremovível trabalho da redação técnica. Somente a dicção nobre poderia a tais alturas consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários que me exigem!
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O blog, hoje, sendo um meio tão maleável quanto o livro / não tanto um gênero textual quanto uma mídia. Os melhores que eu conheço talvez sejam o Te dou um dado? e o antologia do esquecimento.
No Tdud?, uma estrutura de post quase permanente: título, citação, texto, imagem. A piada não tem paradeiro certo. Embora nós a esperemos sempre no texto, que funcionaria ao menos como conector causal da ironia, é frequente que ela esteja em um negrito na citação ou na associação inesperada entre título e imagem. Mais frequente mesmo é que ela esteja no post todo, interligada entre as partes, o que deixa a coisa mais engraçada possível. Por exemplo.
Já o antologia do esquecimento é um blog "sério". Henrique Fialho publica vários posts por dia, boa parte deles com citações de poemas ou de depoimentos de escritores. É um bom blog de leitor / um blog de um bom leitor / que antologiza sem cerimônia / e que não desperdiça espaço nem tempo, como provavelmente eu estou fazendo agora.
Neste blogue eu só publico ensaios de crítica literária e mais nada. Meu objetivo não é fazer jornalismo cultural, em primeiro lugar porque eu não gosto de jornalismo cultural, em segundo lugar porque já tem muita gente fazendo isso, alguns até que bem.
Mas de vez em quando o entusiasmo precisa ser compartilhado, né, e este post aqui é pra dizer das delícias que me tomam quando eu topo com alguma coisa da Não Editora, que conheci há alguns meses, quando trabalhava numa livraria.
O livro brasileiro é muito cafona, você não acha? Algumas edições saem bonitas, vá lá, naquele molde comercialzão da Companhia das Letras. A Globo tem feito umas coisas legais, com edições sóbrias como as das obras da Hilda Hilst, do Roberto Piva, do Livro das Mil e Uma Noites. Mas desde o boom da Cosac Naify, os livros brasileiros têm buscado cada vez mais um ideal chic-dondoca, mesa de centro da sala de estar, uma coisa kitsch que dói, pronto-falei.
E como são caros!!! Eu, que mal sei do meu umbigo, não vou me meter a escrever sobre mercado editorial. Mas me parece uma canalhice não estarem todos os editores do Brasil fazendo hora extra para repensar o livro nacional, sua distribuição, seu custo. Opinião de leigo. E de leitor sem salário.
Pois bem, os livros da Não custam por volta de 20 reais. E não se metem a pocket books, como fazem os da Companhia de Bolso. Nem são pocket books, como os da L&PM (que, aliás, estão cada vez mais caros, só pode ser a inflação). Se você ainda não encontrou nenhum, vá para uma livraria e confira: edições elegantes, leves e saborosas como nunca se viu. E que dão a impressão de que o livro saiu da necessidade do texto, e não do ego da editora.
Textos esses que prometem. Não sei se cumprem - o meu porquinho tem quase moedas o bastante pra que eu consiga comprar meu primeiro exemplar (comprar comprar comprar comprar) -, mas parece que sim. Se não bastarem as críticas favoráveis que romances como Areia nos dentes e O professor de botânica têm recebido, no site tem como degustar um pouco de cada texto caso o seu porquinho também esteja amargando a gripe A.
E já que estamos falando dos livros que não lemos, a Não Editora acaba de lançar o Desacordo ortográfico, coletânea de textos que traz inclusive Manoel de Barros, Luandino Vieira e Pepetela (!!!) e que deve valer uma espiada. Afinal, que mal pode haver em julgar um livro pela capa?
:)
Em tempo: outra editora bacana é a Língua Geral. Nem tudo está perdido.
Um amigo meu, latinista, me contou que no Brasil, do pouco que se traduz de textos clássicos, muito é repetido. Cada um quer deixar a sua tradução da Ilíada ou do raio que o parta. E pouca gente vai para o garimpo.
*
Haroldo de Campos, no livro A arte no horizonte do provável, diz que a tradução que Hölderlin fez da Antígona de Sófocles era motivo de riso pra gente como Goethe e Schiller. Schelling (ao que tudo indica) escreveu
Se Sófocles tivesse falado a seus atenienses de maneira tão desgraciosa, emperrada e tão pouco grega, como é pouco alemã esta tradução, seus ouvintes teriam abandonado às carreiras o teatro.
Haroldo mostra que, mais tarde, gente como Benjamin e Brecht diria exatamente o contrário, louvando a tradução de Hölderlin no que ela tinha de poético, independente do que fosse inexato (que era a crítica que lhe faziam, o poeta não saber o grego). E Haroldo cita um outro alemão:
Nossas versões, mesmo as melhores, partem de um princípio falso. Pretendem germanizar o sânscrito, o grego, o inglês, em lugar de sanscritizar o alemão, greicizá-lo, anglizá-lo. Têm muito maior respeito pelos usos de sua própria língua do que pelo espírito da obra estrangeira... O êrro fundamental do tradutor é fixar-se no estágio em que, por acaso, se encontra sua língua, em lugar de submetê-la ao impulso violento que vem da língua estrangeira.
*
O próprio Haroldo de Campos escreveu, mais de uma vez, que não se trata de descartar as traduções acadêmicas de conceitos esmerados, mas apenas de entender que a tradução poética trabalha em outros termos, que ele chama de transcriação. Nos passos de Hölderlin, Haroldo propõe que toda tradução poética seja uma recriação do poema original num outro poema, também este original, também ele semente da semântica, tão poema quanto o outro.
*
O entusiasmo criativo, não sei se tanto do Haroldo quanto dos díscipulos que vivem por aí exaltando a pérola do poético do Parnaso, é um crivo, no entanto, talvez tão raso quanto o acadêmico.
Penso a partir do livro do Todorov, A literatura em perigo, em que ele escreve:
Uma concepção estreita da literatura, que a desliga do mundo no qual ela vive, impôs-se no ensino, na crítica e mesmo em muitos escritores. O leitor, por sua vez, procura nos livros o que possa dar sentido à existência. E é ele quem tem razão.
E também a partir da afirmação de João Adolfo Hansen. O entrevistador afirma que uma tradução feita por Alberto Mussa de poemas árabes tem "profundas idiossincrasias culturais, de um meio pastoril-arcaico e relações tribal-patriarcais e pensamento mágico-religioso, [que] afinal não se materializam numa linguagem poética que a torne suficientemente interessante para o leitor contemporâneo". Hansen responde:
Quanto ao que me diz sobre sua leitura dos poemas árabes, teríamos que discutir os regimes de historicidade da poesia. Aqui, justamente, acho que está o nó da questão da crítica. Não é possível lê-los considerando a historicidade deles como uma vantagem, não um ônus? Lê-los se despersonalizando num devir-árabe-pastoril-arcaico-mítico-religioso? Por que o presente tem que dar a última palavra sobre o interesse de algo estranho a ele? Porque é o único tempo real que temos?
*
A tradução pode, talvez, ser um trabalho nem de atualização poética nem de precisão conceitual. Quem sabe se fosse apenas um ato de estima? É no que estou pensando.