Quando a menina Isabella Nardoni foi atirada da janela do apartamento pelo pai e pela madrasta, nós nos deliciamos de assunto durante quanto tempo? Entre a queda da menina e a prisão dos assassinos houve todo tipo de manifestação emocional nas casas, nas escolas, nos telejornais e programas de auditório.
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Qualquer caso policial que envolva violência - de preferência sexual - contra crianças merece destaque no site da Folha de São Paulo.
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Assim como a infância é uma categoria de compreensão histórica, quero dizer, não universal nem atemporal, a violência contra a criança também o é. Em
um artigo publicado nos Cadernos Pagu, a pesquisadora Tatiana Savoia Landini analisa as notícias publicadas no jornal
O Estado de São Paulo com relação a esse tema. Recolhendo reportagens de dois períodos diferentes (o início e o final do século XX), Tatiana identifica uma mudança significativa não só na quantidade e no detalhamento (crescentes) dessas notícias, como também uma mudança
do que é considerado crime ou abuso. Vale a pena lê-lo.
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Não acredito que seja eticamente pertinente, em hipótese alguma, a defesa de atos violentos cometidos por causa de uma dissimetria de poder já estabelecida. Assim como não proponho a relativização da dor, de qualquer dor.
E é justamente por isso que me deixa puto da vida a demonização que se faz d
o pedófilo e a vitimização que se faz d
a criança, ambos achatados por um senso moral raso que desconsidera a complexidade humana e a especificidade de cada caso, tendo como objetivo exorcizar um mal e não resolver um problema.
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A dor deve ser respeitada. Qualquer que seja essa dor.
Em 1945, tropas aliadas libertam a Holanda da ocupação nazista. Num vilarejo de pescadores, um menino assiste à chegada de um minúsculo exército canadense, responsável por correr dali um contingente alemão ainda menor. No meio desse exército, um soldado chama a atenção do menino - e o soldado, por sua vez, não tira os olhos do garoto.
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Numa cidadezinha do oeste estadunidense, dois meninos entram para um time de beisebol. Um deles, Neil, se torna o melhor jogador do time; o outro, Brian, é um menininho desengonçado e tímido demais para jogar bem. Dez anos depois, Brian continua sendo um rapaz tímido e desengonçado, Neil ainda é o dono da bola e o treinador do time de beisebol sumiu do mapa, deixando apenas rastros.
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For a lost soldier (Holanda, 1992) e
Mysterious Skin (EUA, 2005) são filmes que encenam relacionamentos sexuais entre adultos e crianças.
Mysterious skin é um filme narrado sob dois pontos de vistas, um para cada menino. Eles não se conhecem e, aos dezoito anos, a vida leva cada um dos dois a reviver o abuso sexual sofrido na infância. Em duas cenas maravilhosamente sintéticas, cada um dos meninos recebe chuva sobre si.
Brian, sentado no escuro à noite e apavorado, sente os primeiros pingos de água fria. Neil, por sua vez, sorrindo sobre um fundo claro, recebe no rosto rodelinhas de
froot loops, aquele cereal colorido.
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Jeroen, o menino de
For a lost soldier, fica fascinado pelo soldado bonitão. Aos doze anos, ele sente desejo - cada vez mais difícil de refrear - pelos meninos e homens com quem convive. O soldado mais tarde diria, numa língua que o menino holandês seria incapaz de compreender, que, no momento em que seus olhares se cruzaram ele percebeu que o menino era
diferente.
Começa então uma dança de sedução. O soldado, Walt, já tem o repertório corporal da cópula. Jeroen, no entanto, ainda não possui nenhum repertório de canalização do desejo sexual. Esse hiato entre os dois faz com que, à medida que Walt se aproxima fisicamente do menino, Jeroen se afaste fisicamente do homem e depois, encontrando espaço para se movimentar, aproxime-se tateando um ritmo próprio.
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Aos nove anos de idade, Neil já se masturba com frequência e fica fascinado quando vê o treinador do time, que encarna o homem das suas fantasias: alto, forte, de bigode (estamos nos anos 80). A casa do treinador, então, é o sonho de qualquer menino, cheia de doces e videogames.
O treinador faz com que Neil se sinta à vontade, convidando-o várias vezes à sua casa antes de transar com o menino. Aos poucos, ele faz com que Neil se encaixe em uma série de situações de
fetiche: grava sua voz, tira fotos, brinca de posições e atividades diferentes.
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Em
Mysterious skin, todas as cenas de sexo remetem diretamente a clichês da indústria pornográfica. Quando Neil, mais velho, trabalha como garoto de programa em Nova Iorque, um de seus clientes tira as roupas, se põe de quatro na cama e diz algo como
agora fode o meu cu apertado com essa sua rola dura de moleque. O repertório de sacanagem em inglês é infinito e Neil o vivencia desde a infância.
For a lost soldier, por outro lado, se passa nos anos 40, num espaço quase pré-cinema. Anterior, portanto, à proliferação massiva da imagem que vivemos hoje. As experiências, parece, são mais narrativas do que imagéticas. Jeroun e Walt brincam entre si, mas são brincadeiras que não anteveem um resultado. Ao contrário das atividades propostas pelo treinador, que visam atingir determinada composição cênica, como nos livros do Marquês de Sade.
Em
For a lost soldier, o que poderia parecer um filme sobre o abuso sexual na infância se transforma, suavemente, numa história de amor. As únicas violências existentes no filme são a violência da guerra, que pelos inusitados caminhos de Eros é o que acaba unindo o casal, e a violência do próprio Amor, que tem o dom de ser tão contrário a si mesmo.
Já em
Mysterious skin / não há sombra de amor. Apenas rupturas, coisas rasgadas e deixadas, faltas que ficam. Brian passa o filme inteiro tentando descobrir o que aconteceu com ele quando criança, pois não se lembra de nada e seus pesadelos frequentes parecem apenas desviá-lo dos fatos. Neil se empenha em proliferar o fetiche, mantendo o seu corpo no estado de objeto de prazer em que o treinador o usava.
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Walt retorna ao Canadá junto com as tropas aliadas, deixando o menino Jeroen desolado. No momento em que o filme começa, Jeroen adulto (intepretado por si mesmo, o autor da autobiografia que inspirou o filme) monta um espetáculo de dança em que pretende rememorar essa fase de sua vida. Ele nunca mais soube de Walt.
Um dia, o treinador desaparece. Assim como Walt, ele não se despede.
Mysterious skin dá a entender que o treinador é um criminoso em série, tendo talvez partido para outra cidade em busca de outro menino.
For a lost soldier dá a entender que o soldado, não podendo mais ficar no país estrangeiro nem se despedir propriamente de Jeroen (pois eles não falam a mesma língua), volta à sua insuportável vida canadense, levando consigo o amor do menino.