quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Querido azul

Na última grande viagem que fiz sozinho, levei poucos livros. O ônibus demorou dois dias e meio pra atravessar o sul do Brasil, os pampas argentinos, subir e descer os Andes e chegar a Santiago. Nesse trajeto li O velho e o mar, do Hemingway. Uma edição de bolso em inglês com uma capa xurumbrega. Gostei de uma imagem do texto que dizia algo sobre tartarugas sendo mortas de modo cruel, parece que se lhe cortam os membros e ela continua viva e doendo. O narrador comparava o velho à tartaruga, mas não lembro de que jeito. Na mesma viagem, na volta, li num conto do Cortázar e achei bonito:

TORTUGAS ANIMALES DELICADOS. ALGO TONTOS, NO DISTINGUEN. UNA LASTIMA.

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Levei também o Invenção de Orfeu, do Jorge de Lima. Cada vez que eu pego nesse livro, tenho a impressão de que é, sei lá, o maior livro de poesia brasileira do século XX, um rótulo assim. O-maior-acontecimento-místico-ao-lado-do-Mensagem-de-Fernando-Pessoa. Muito denso e malucão. Mas não consigo ler porque a minha edição é muito ruim, pequenininha gorducha espremida nela mesma, e esse é um livro de e s p a ç o s . São dez cantos ao todo, acho, e eu ainda não consegui passar do IV.

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Agora estou lendo o Auto de Fé, do Elias Canetti. Mas não é um livro bom pra levar em viagens: muito grande, pesa na mochila. E parece que a estória se passa dentro de uma biblioteca. Que quero eu com bibliotecas? Pegar avião, caçar borboleta.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Confissões de leitura

O livro, como produto, independe do texto. Quero dizer: qualquer texto pode ser formatado assim ou assado. Uma boa edição com ilustrações bonitas e voalá, temos um bom livro - de folhear, amor táctil.

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O texto é apenas um dos componentes da leitura. (Machado de Assis, na biblioteca, sempre teve cheiro de pó)

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Comprei um livro lançado neste ano. Tive ânsia de tê-lo. Fui ler e. Era um doce bonito de gosto vagabundo. Cuspi, dei embora.

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De uma propaganda da Estante Virtual: compre em sebos, as livrarias estão cada vez mais achatadas em lançamentos.

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Eu vejo um museu de grandes novidades.

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Diz que perguntavam pro Drummond "e a literatura contemporânea?", e ele respondia "Estou atrasadíssimo nos gregos."

E que perguntaram pra Clarice "que conselho você dá aos jovens escritores" e ela: "Que escrevam."

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Floradas na serra é um romance de Dinah Silveira de Queirós que foi um sucesso na época, 1939. Deu filme com Cacilda Becker nos anos 50. É a história de um grupo de jovens que vai para Campos do Jordão, acho, tratar da tuberculose. A narrativa alterna amores cândidos com golfadas de sangue, mas não chega a ser melodramática. Parece que Cacilda Becker protagonizou o filme no papel da antagonista do livro, a fatal Lucília, que recusa tratamentos e se envolve com muitos homens, mas se fode e termina com uma costela a menos - por conta da tuberculose. Tirar costelas era um tratamento extremo.

Lucília também é título de um romance do Alencar que conta a história de uma mulher forçada pela vida a se prostituir, mas ela tem um bom coração. O nome da heroína e do livro devem remeter ao pirilampo, vagalume, também lucíola, como uma luz fraca e incerta que atravessa densidades escuras até sumir da nossa vista.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Caixa-preta

As aparências desenganam. Estou desenganada.

O lance da contracultura: referências não compartilhadas. Um texto que diz

Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três
da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.

põe na mesa, no aleatório, o diário pra ser espiado. E o diário se expia quando o leitor abraça a memória alheia, embebe-se nela, o reality show acirra as brigas em casa: cada membro da família toma pra si as feridas das pessoas quaisquer que estão na tela.

Em A teus pés, o texto medusa-sereia. Fagocita a pessoa que lê, traga-a na comunhão que diz suas memórias cotidianas são tão importantes quanto as minhas. Depois petrifica a leitura num ritmo.

*

Como única evidência de um desastre, sumário dos destroços. A caixa-preta é encontrada e nós a acessamos como registro histórico, a pista definitiva pro mistério. Mas o poeta é um fingidor ("A gente sempre acha que é / Fernando Pessoa") e Ana C. não é tonta: finge a pista, decola e aterrisa um OVNI, maravilha, apoteose. Em diversos poemas encena a mulher fatal:

"Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna."

"Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo."

"Fotogramas do meu coração conceitual.
De tomara-que-caia-azul-marinho."

"ATRAS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão,
por injunções muito mais sérias, lustrar pecados
que jamais repousam?"

"Aviso que vou virando um avião. Cigana
do horário nobre do adultério."

"... santa que te toma as duas mãos."

"Abre a boca, deusa
(...) as mulheres gostam
de provocação"

"eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar
(...)
bem viada, vândala"

"Não, Pedro, não quero mais brincar de puta."

"Acordei com coceira no hímen."

"Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça
o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais
quem desejo, que me assa viva"

Gostosa e independente, esfinge e joguete. Imagens atribuídas mais ou menos a qualquer escritora até então (Clarice Lispector, Patrícia Galvão, Sylvia Plath, Virginia Woolf, Alejandra Pizarnik). Ana C. escreve uma pose.

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("Caixa-preta" é o título de um poema, escrito à Ana C, do cantos de estima)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ano que vem mês que foi

Se temos uma tradição e queremos fazer algo de novo dentro dela, não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este conhecimento que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo e coerente com ela. Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação

Caetano Veloso, 1966


Toda geração tem que, num pequeno espaço de tempo, arrodeada por uma relativa obscuridade, compreender seu tempo pra fazer a antítese dela.

Tom Zé, aqui

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Areia nos dentes, de Antônio Xerxenesky. Confissão de leitura

Comecei a ler deu desgosto no estômago.

"E os mortos voltarão à vida", exclamou o xamã na noite, e seu grito ecoou e foi ouvido. O céu estava particularmente belo, em tons arroxeados com nuvens esparsas e finas fatiando a lua.

E havia o medo. Havia o medo em todos os cantos. Hoje em dia, os homens temem bobagens; outrora, temiam a noite e a morte. Não importava a arma no coldre.

"Exclamou na noite", "o céu belo", "a marquesa aceitou o chá", "E havia o medo. Havia o medo". Nas primeiras linhas a gente percebe: é uma paródia, uma emulação de faroeste. Isso a capa já havia dito. Eu é que começo cada livro esperando encontrar X Grande Escritorx da Minha Geração.

*

Depois de poucas horas, já havia lido mais da metade do romance. "É um nada", pensei. Em nenhum momento levantei os olhos do livro para estranhar as palavras.

*

Ao final da leitura, percebi que estava me divertindo. Apesar de nos últimos capítulos o livro assumir de vez um recurso didático de ficar se justificando, se explicando à guisa de metalinguagem, coisa que aparece no livro inteiro. Mas eu me divertindo.

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Me ocorreu que, não só na poesia, mas também na prosa. Diversão tem sido uma constante. Pensei na presença do folhetim no século XIX. Alexandre Dumas, José de Alencar. A "alta literatura" produzindo entretenimento.

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Se o buraco negro é o paradigma da leitura. Perder-se no vácuo. Uma literatura da alienação, a grande do século XX? Kafka, Lispector, Faulkner. Mesmo noutra linha. Bukowski, por exemplo. Alguém sempre te chuta as muletas.

Agora: não será também isso datado? Essa uma literatura netunoplutoniana, talvez uraniana (netuno as névoas, plutão a morte, urano a ruptura, os três planetas descobertos de 1781 pra cá). E agora, Plutão deixando de ser planeta, nós num tempo sem profundidade escura (o blablá do pós-moderno).

No entanto Dumas, Alencar. Saint-Clair das Ilhas. E "literatura" é um conceito romântico. Dante não tinha interioridade freudiana. Até o século XVIII, em grande parte, o que hoje a gente chama de literatura era reprodução de gêneros. A crítica é descritiva, a poética era prescritiva.

*

Não sei.

*

Divertido, sim, o Areia nos dentes. Isso é um problema?

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Projeções & narrativas de si: notas


a alegria é a prova dos nove

1.

A premissa de que a literatura, desde o fim do século XIX, encena um derrotismo do sujeito. Procede? Uma falha absoluta da existência, vanidade. O não-autor que não-diz.

Ou isso é invenção da crítica? Será que é a crítica literária que, desde os anos 1940, empreendeu esse projeto de literatura desencantada?

Será que isso é um projeto político de apatia?

2.

O suicídio é uma atitude extrema. Que personagens de romances / que poemas encenam o suicídio? Clarice Lispector, num conto (acho que de A bela e a fera), a personagem-narradora conversando com um homem que pensa em se matar diz que não nos é permitido o suicídio, que o nosso dever é querer viver.

Na minha adolescência, Clarice Lispector era sinônimo de autoaniquilação. Era assim que a gente lia.

Os sofrimentos do jovem Werther é de 1774. Todo o romantismo emo oitocentista é evocado pelos adolescentes góticos que curtem cemitério, aquela necrofilia do Álvares de Azevedo. Mas aí acho que o suicídio é mais alegórico.

O suicídio de Sylvia Plath e de Ana Cristina Cesar, como fato, têm muito mais força e veracidade.

Sylvia Plath particularmente. Sua obra é considerada suicida. Em A redoma de vidro, espécie de autobiografia (o que é autobiografia?), a personagem principal é uma suicida frustrada. Assim como o eu-lírico de "Lady Lazarus".

No entanto, Ariel. Quando Plath morreu, deixou o livro pronto. Ted Hughes editou-o. Sua alteração mais significativa foi a inclusão, como último poema do livro, de "Edge", talvez o último poema escrito por Plath.


Beira

A mulher está perfeita.
Morto, seu

Corpo veste o sorriso da conquista,
A ilusão de uma Grega necessidade

Escorre nos cortes de sua toga,
Nus, seus

Pés parecem dizer:
Viemos tão longe. Acabou-se.

Cada filho morto encolhido, cobra branca,
Um em cada pequena

Tigela de leite, agora vazia.
Ela os dobrou

De volta ao seu corpo como pétalas
De uma flor que fecha quando o jardim

Espeta e odores sangram
Da funda e doce garganta da dama da noite.

A lua não tem porque ficar triste,
Atenta com seu chapéu de osso.

Ela sabe como funcionam essas coisas.
O escuro dela quebra e draga.


Cerca de vinte anos depois, Ariel foi republicado, agora como o tinha planejado Sylvia Plath. O último poema é "Wintering", o inverno. O poema fala sobre mel e seu último verso é

The bees are flying. They taste spring.

"As abelhas voam. Saboreiam primavera." E Plath dedica Ariel a seus filhos.

3.

O suicídio não é apático. A melancolia é.

Mesmo na arte pop: a Marilyn de Andy Warhol é uma paródia melancólica, não afirmativa. Como a música de Tom Zé, "a Brigitte Bardot está ficando velha / envelheceu antes dos nossos sonhos". Marylin já tinha morrido quando Warhol reproduziu seu rosto.

4.

A música pop, no entanto. A música disco é afirmativa: "I am what I am", "I will survive", "Hey boy, there's no need to feel down", "I've got all my sisters with me".

Na literatura, a alegria? Só consigo pensar no Guimarães Rosa. Como uma alegria que não passa pelo filtro do cinismo ou da ironia. A visão do peru no quintal, a de uma árvore enorme. Logo depois, a morte. Mas não é uma morte de derrota, porque não é racional. É o menino que vê a morte, aprende com a morte, mas ele vive a morte com seu corpo fresco de menino, como uma surpresa, não uma fatalidade. Olha o menino, ui ui ui.

Na música é mais fácil encontrar essa atitude. Caetano Veloso. Alegria e generosidade.


5.

O que é mais difícil encontrar na música pop é o suicídio. Os astros da música geralmente esgotam a vida. Janis Joplin, Cazuza. Mesmo Kurt Cobain não cantava o derrotismo. "Eu sou tão feio, mas tudo bem / Você também, a gente quebra os espelhos. // Manhã de domingo é todo dia / E eu não ligo, não tenho medo".





O suicídio aparece nessa música aí debaixo.



Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender



6.

O pop destes últimos anos. Girls just wanna have fun. Lady Gaga parodia e homenageia o kitsch. É quase tropicalista (kkkkkkkkkk). Será legal ler o Rilke Shake vendo um show da Lady Gaga?

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

alheava (4)

Dois caminhos principais no trabalho: uma via seca e outra úmida. (A nomenclatura eu estou tirando do livro Tarô ou a arte de imaginar, de Alberto Cousté, p. 35, onde há a seguinte esquematização das vias de ação no mundo e de acesso ao conhecimento:

Via seca: Solar. Masculina. Racional. Conhecimento dedutivo. Extroversão. Ordem dórica.
Via úmida: Lunar. Feminina. Intuitiva. Conhecimento indutivo. Introversão. Ordem jônica.

Esquematismos à parte...)


João Lima Pinharanda observa que as modalidades de exposição da memória, em alheava, são "através de documentação objectiva (fotos, maquetas, plantas, textos de época) ou de recontares e rememorações subjectivas, sujeitos às alterações provocadas por estratégias de imagem e por lapsos discursivos fruto do próprio passar de tempo". Num primeiro momento, a gente pode dizer que a objetividade aparece numa caixa ou num mapa que, didaticamente, encenam o deslocamento físico de Moçambique a Portugal ou o deslocamento político de Portugal a Moçambique. Por outro lado, as "rememorações subjectivas" residiriam nas fotos de família, por exemplo.

Em "Fotografia: uma pequena suma", Susan Sontag identifica a fotografia ("a maneira inelutavelmente 'moderna' de ver") à frieza do fragmento da aparência. "Como somos modernos (e se temos o hábito de olhar fotos, somos modernos por definição), compreendemos que todas as indentidades são construções. A única realidade irrefutável - e nossa melhor pista para a identidade - é a aparência que as pessoas têm". E em outro trecho: "a fotografia não é uma espécie de agitação moral ou social, destinada a nos incitar a sentir e a agir, mas sim um projeto de notação. Olhamos, registramos, reconhecemos. Essa é uma maneira mais fria de olhar. É a maneira de olhar que identificamos como arte." Nessa concepção, portanto, a fotografia é o subjetivo de tal modo objetivado que sai dos caminhos intuitivos para se integrar à razão fraca (que é a razão moderna), que mesmo fraca não se funde à não-razão.

Não creio que Susan Sontag estivesse pensando nas fotos de família. Essas, ainda que passem pelos mesmos procedimentos básicos de qualquer fotografia, geralmente não se destinam à exposição pública. Mesmo quando mostradas numa festa, após uma exposição rápida elas voltam para o silêncio dos álbuns, que são guardados no escuro dos armários e é esse o lugar delas, o lugar que elas ocupam na memória de quem as tirou - diferentemente das fotografias profissionais que, mesmo guardadas no escuro, na intenção do fotógrafo estão alocadas em alguma parede à vista dos outros. Portanto as fotos de família estão baseadas especialmente no afeto. E, no afeto, a aparência não é "a única realidade irrefutável", mas certamente é uma das realidades irrefutáveis para a vivência do carinho e das saudades.

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Ao expôr publicamente suas fotos de família, um artista pode deslocar para o status de arte algo que, para os parentes e antepassados que tiraram aquelas fotos, deveria ter apenas um status afetivo. Hoje, essa é uma atitude bastante plausível, dado que a superexposição é o que dá estatuto de realidade ao indivíduo (vide Facebook) (lendo também Lipovetsky, "Narciso ou a estratégia do vazio").

Vendo, no entanto, o conjunto do projeto alheava, me parece que esse não é (o único?) o motivo das fotos. Isso quando se percebe que as duas vias - a seca/objetiva e a úmida/subjetiva - são, talvez, uma única via - de mão dupla. A documentação oficial, alojada num foco pessoal, transforma-se em rememoração afetiva. Nas nossas gavetas, junto com as fotos íntimas, estão a certidão de nascimento, a conta do banco, o panfleto entregue na esquina. A memória afetiva não é nada de menos. Vide as canções do Roberto.

Por outro lado, todo esse material trazido a público em registro de arte. Daí me ocorrem duas coisas: primeiro, a proposta de uma discussão política (histórica, estética, tudo isso é político também). Depois, o aceno para uma comunhão afetiva.







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esta é uma aproximação gradativa do trabalho alheava.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Os grandes colecionadores de mantras pessoais não saberão a metade

Do que eu conheço, o Rilke Shake é o melhor da literatura brasileira comercial dos últimos treze anos.

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É um livro coeso, em que não há poemas de sobra ou destoantes. Além disso, é um livro que, sozinho, inaugura um tom, uma dicção. A última vez que isso aconteceu foi com o A teus pés, em 82.

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dentadura perfeita, ouve-me bem:
não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas, chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?
dentinhos lindos, o boi que comes
ontem pastava no campo. e te queixaste
que a carne estava dura demais.
dura demais é a vida, dentadura perfeita.
mas come, come tudo que puderes,
e esquece este papo,
e me enfia os talheres.

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O Rilke shake tem um descompromisso. Acho que a palavra é essa.

Descompromisso é um termo inexistente no cânone brasileiro. Aí vem a Angélica e faz A poesia do descompromisso, alinha o blasê na tradição da grande poesia. Mas não é descaso. Dá risada.

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A arte moderna é essencialmente (estruturalmente) de ressentimento. Na literatura, o século XX se construiu sobre o estar-fora-de-lugar de Baudelaire e Kafka. Clarice Lispector, atestam as capas da Rocco, só interessa naquilo que a inclinação de uma cabeça tem de melancólico. E seria uma boa enumerar a constante do suicídio nos últimos cem anos, assim como da morte no que ela tem de sofrimento individual, e não de acontecimento público.

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Tem um lugar em que o Nietzsche diz que o excesso de consciência histórica causa embotamento da vida. Isso já no século XIX. Lembro agora da G.H., presa entre a barata e a porta, vendo do alto do seu apartamento a evolução das civilizações africanas.

No Rilke shake, não se trata de uma recusa da tradição intelectual. Mas de uma alternativa à decadência da civilização ocidental, alternativa que aparece em grande parte pela atenção à memória afetiva criada dentro da indústria cultural.


(Nunca estudei isso de "indústria cultural", nunca li Adorno, mas me parece que um livro de Gertrude Stein e um cd do Roberto Carlos, numa prateleira, gozem do mesmo estatuto de presunto.)

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r.c.

os grandes colecionadores de mantras pessoais não saberão a metade/ do que aprendi nas canções/ é verdade/ nem saberão/ descrever com tanta precisão/ aquela janela da bolha de sabão/ meu bem eu li a barsa/ eu li a britannica/ e quando sobrou tempo eu ouvi/ a sinfônica/ eu cresci/ sobrevivi/ a privada de perto/ muitas vezes eu vi/ mas a verdade é que/ quase tudo aprendi/ ouvindo as canções do rádio/ as canções do rádio/ quando meu bem nem/ a verdadeira maionese/ puder me salvar/ você sabe onde me encontrar/ e se a luz faltar/ num cantinho do meu quarto/ eu vou estar/ com um panasonic quatro pilhas AAA/ ouvindo as canções do rádio

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domingo, 15 de novembro de 2009

Procurando crítica literária?


(a imagem é do surdina
o "hahahahahahahahahahahaha" é meu :)

Drummond prolixo

Um poema como

Cota zero

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

(em Alguma poesia, de 1930)

é raridade nos livros de Drummond. Essa concisão de piada, que aparece uma ou duas vezes no Alguma poesia, parece que só vai reaparecer no Lição de coisas, de 1962, no qual é evidente a influência da poesia concreta. Nesse livro também está o primeiro movimento de retração macropolítica da poesia de Drummond, que, na parte "Memória", já antecipa um pouco do que será o Boitempo.

O sátiro

Hildebrando insaciável comedor de galinha.
Não as comia propriamente - à mesa.
Possuía-as como se possuem
e se matam mulheres.

Era mansueto e escrevente de cartório.

(em Lição de coisas)


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Numa aula, o professor Alcides Villaça contou que, quando foi lançado o Boitempo, em 1968, ele esperava ansiosamente por uma poesia engajada, um novo A rosa do povo. Era o primeiro livro de poemas inéditos de Drummond desde 1962 e, consequentemente, desde o golpe militar de 1964.

Ler Boitempo, portanto, foi decepção e indignação. No ano do AI-5, o poeta afrouxava e ia falar do sítio, da infância, das coisas miúdas.

*

A rosa do povo é o Momento Grandioso da poesia drummondiana. Publicado em 1945, ano do fim do Estado Novo, diz-se que o livro já circulava clandestinamente entre intelectuais e artistas, escondido da ditadura de Getúlio Vargas. É um livro que canta a afirmação do mundo melhor, da transformação social que está em curso e resultará na realização da utopia socialista.

*

No entanto, sempre cientes do limite do alcance (Drummond tem Saturno domiciliado em Capricórnio, em sextil com o Ascendente. [Fonte]), os poemas de A rosa do povo não encenam a glorificação didática que era comum no pensamento e na literatura de esquerda, afins ao realismo soviético, e que vai aparecer com muita força em alguns poemas de Dentro da noite veloz, de Ferreira Gullar (1975).

Em A rosa do povo, os olhos "são pequenos para ver / o mundo que se esvai em sujo e sangue, / outro mundo que brota, qual nelumbo

- mas vêem". O ser humano, bicho da terra tão pequeno, minúsculo perto da enormidade da destruição e da vida que se agita, não consegue nunca se fazer deus ou, junto com seus irmãos, formar uma harmonia coreografada de musical hollywoodiano. Mas ele tem olhos e vê. Todo coração é uma célula revolucionária.

***

Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.

Essa viagem é mortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

***

Esse é o livro dos poemas longos, de versos longos. O tom épico envolve as palavras pela duração epopeica dos poemas, mas também pela sintaxe prosaica. Drummond escreve, sem floreios, poemas com a sintaxe corriqueira do português.

Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.

Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
Talvez a linha do busto,
da perna, talvez do ombro.

Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro, menino, choro.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A novíssima literatura



*

É só um palpite.

*

Quando a gente fala em "poesia de uma época", há uma questão que antecede a própria poesia, que é a seleção que fazemos do que vamos considerar "poesia" e relevante como tal.

Isso é a especificidade e o ônus de qualquer leitura geracional.

E tem também que o que a gente quer é a brasa na nossa sardinha.

*

Mas então.

Esses dias eu percebi homogeneidades nas minhas referências.

*

Do final dos anos 70 e começo dos 80 no Brasil, o que a gente escolhe hoje é a chamada poesia marginal, ou geração mimeógrafo, ou geração do desbunde. Poetas que circularam pelo Rio de Janeiro e talvez por São Paulo entranharam o tropicalismo como poética e, na tradição do modernismo de Oswald de Andrade, o humor como método.

Esse rasga-coração vai dar frutos tão maduros quanto a Ana Cristina Cesar, que faz lirismo de televisão, e o Paulo Leminski, que faz rockstar do poema.

*

Nos anos 90, no entanto, a poesia mainstream bebe da obsessão formalista à Haroldo de Campos, dos impulsos épicos de Drummond e João Cabral e do acanhado melancólico de um Manuel Bandeira. Disso aparece uma dicção que, se eu fosse o Antonio Candido nos anos 40, eu diria "pouco viril".

Todo mundo está preocupado, então, com os insondáveis da linguagem o deslocamento do poeta no mundo contemporâneo ao mesmo tempo em que faz uma poesia de concisão que pretensamente deve se autobastar.

O épico no lírico sem épico sem lírico.

Drama.

*

A galera que está sendo eleita hoje como a boa nova jovem poesia pela mídia dá risada dessa pretensão poética.

O ponto em comum com a poesia marginal talvez seja só o humor. Mas é um humor de outro modo, mais cínico e cético.

você me diz: nunca dês um nome a um trem
sempre é outro trem a passar
eu digo: ha. Ha ha
ha ha

(de "Rufus", do Ismar Tirelli Neto)

Ponto em comum com a poesia dos anos 90 são as referências literárias. Que são evocadas com certo descaso. Na verdade é mais uma briga com a Grande Poesia do que uma devoção solene às suas conquistas verbivocovisuais. O ponto em comum então, se é que existe, é mais temático, e não de método.

na banheira com gertrude stein

gertrude stein tem um bundão chega pra lá gertude
stein e quando ela chega pra lá faz um barulhão como
se alguém passasse um pano molhado na vidraça
enorme de um edifício público

gertrude stein daqui pra cá é você o paninho de lavar
atrás da orelha é todo seu daqui pra cá sou eu o patinho
de borracha é meu e assim ficamos satisfeitas

mas gertrude stein é cabotina acha graça em soltar pum
debaixo d’água eu hein gertrude stein? não é possível
que alguém goste tanto de fazer bolha

e aí como a banheira é dela ela puxa a rolha e me rouba
a toalha

e sai correndo pelada a bunda enorme descendo a
escada e ganhando as ruas de st.-germain-des-prés

(da Angélica Freitas, no Rilke Shake)


O verdadeiro descaso é com os cânones e a posição cânonica dxs Grandes Poetas. Legal que esta é uma geração extremamente escolarizada, jovenzinhos de classe média que cresceram num país em que se falou muito em democratização e, especialmente, democratização do ensino. E que escrevem dando de ombros às instituições.

a novíssima literatura


você quer um dia
ser estudado
numa sala de aula qualquer
por uma turma de pirralhos
que vão zoar suas roupas hoje modernas
falar que o que você escreveu é chato pra caralho
fazer chifrinho na sua foto
interrogação.

queira morrer antes
comendo caramelos
a estranha paixão de Hitler
caramelos.


(Me ocorreu agora que o hip hop não tem registro de humor. É só reparar na molecada de periferia vestida de rapper. Os meninos, principalmente. O próprio gingado da caminhada simula que se carrega um peso. A classe social também é um fator geracional.)

*

adendo: esse poema da Bruna Beber é bastante citado por aí. Pra analisar a poesia contemporânea, mais legal acho que era analisar as reportagens que têm sido feitas sobre a poesia contemporânea. A leitura deste post vai por aí, especialmente na seleção dos poemas. Bom observar também que tem toda uma mancomunação implícita entre as editoras, os jornais, quero dizer, uma sardinha lava a outra. Legal também seria fazer um recorte geracional contra isso. Mas, ao mesmo tempo, tem também que eu não posso simplesmente fingir que nada me afeta e que eu não gosto desse tom isento e pueril dos poemas de hoje. Então bora fazer a nossa antítese.

*

(Nota mental: e a prosa nesses termos? Deve ser divertido pensar no estrago que a Clarice Lispector fez na literatura séria, tudo quanto é contista e romancista atribulado com angústias interiores.)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Anotações sobre o blog

Lá pra 2002, era uma pauta bastante comum dos suplementos culturais se o blogue pode ser considerado literatura ou não. E dá-lhe entrevista com a Clarah Averbuck, que na época estava estourando com o brazileira!preta e lançava o primeiro livro, Máquina de Pinball, com textos que em grande parte tinha surgido do blogue dela.

Hoje as pautas são outras, se o livro digital vai acabar com o livro impresso, a chatice é a mesma. E os blogues, como você bem sabe, já não são mais novidade e blablablá.

*

Ana Cristina Cesar profetizou o blogue. Com seus diários inventados, "jazz do coração". O blogue, em princípio, era um diário publicado.

18 de fevereiro

Me exercitei muito em escritos burocráticos, cartas de recomendação, anteprojetos, consultas. O irremovível trabalho da redação técnica. Somente a dicção nobre poderia a tais alturas consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários que me exigem!

*

O blog, hoje, sendo um meio tão maleável quanto o livro / não tanto um gênero textual quanto uma mídia. Os melhores que eu conheço talvez sejam o Te dou um dado? e o antologia do esquecimento.

No Tdud?, uma estrutura de post quase permanente: título, citação, texto, imagem. A piada não tem paradeiro certo. Embora nós a esperemos sempre no texto, que funcionaria ao menos como conector causal da ironia, é frequente que ela esteja em um negrito na citação ou na associação inesperada entre título e imagem. Mais frequente mesmo é que ela esteja no post todo, interligada entre as partes, o que deixa a coisa mais engraçada possível. Por exemplo.

Já o antologia do esquecimento é um blog "sério". Henrique Fialho publica vários posts por dia, boa parte deles com citações de poemas ou de depoimentos de escritores. É um bom blog de leitor / um blog de um bom leitor / que antologiza sem cerimônia / e que não desperdiça espaço nem tempo, como provavelmente eu estou fazendo agora.

É isso.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Julgando um livro pela capa

Neste blogue eu só publico ensaios de crítica literária e mais nada. Meu objetivo não é fazer jornalismo cultural, em primeiro lugar porque eu não gosto de jornalismo cultural, em segundo lugar porque já tem muita gente fazendo isso, alguns até que bem.

Mas de vez em quando o entusiasmo precisa ser compartilhado, né, e este post aqui é pra dizer das delícias que me tomam quando eu topo com alguma coisa da Não Editora, que conheci há alguns meses, quando trabalhava numa livraria.





O livro brasileiro é muito cafona, você não acha? Algumas edições saem bonitas, vá lá, naquele molde comercialzão da Companhia das Letras. A Globo tem feito umas coisas legais, com edições sóbrias como as das obras da Hilda Hilst, do Roberto Piva, do Livro das Mil e Uma Noites. Mas desde o boom da Cosac Naify, os livros brasileiros têm buscado cada vez mais um ideal chic-dondoca, mesa de centro da sala de estar, uma coisa kitsch que dói, pronto-falei.

E como são caros!!! Eu, que mal sei do meu umbigo, não vou me meter a escrever sobre mercado editorial. Mas me parece uma canalhice não estarem todos os editores do Brasil fazendo hora extra para repensar o livro nacional, sua distribuição, seu custo. Opinião de leigo. E de leitor sem salário.

Pois bem, os livros da Não custam por volta de 20 reais. E não se metem a pocket books, como fazem os da Companhia de Bolso. Nem são pocket books, como os da L&PM (que, aliás, estão cada vez mais caros, só pode ser a inflação). Se você ainda não encontrou nenhum, vá para uma livraria e confira: edições elegantes, leves e saborosas como nunca se viu. E que dão a impressão de que o livro saiu da necessidade do texto, e não do ego da editora.

Textos esses que prometem. Não sei se cumprem - o meu porquinho tem quase moedas o bastante pra que eu consiga comprar meu primeiro exemplar (comprar comprar comprar comprar) -, mas parece que sim. Se não bastarem as críticas favoráveis que romances como Areia nos dentes e O professor de botânica têm recebido, no site tem como degustar um pouco de cada texto caso o seu porquinho também esteja amargando a gripe A.

E já que estamos falando dos livros que não lemos, a Não Editora acaba de lançar o Desacordo ortográfico, coletânea de textos que traz inclusive Manoel de Barros, Luandino Vieira e Pepetela (!!!) e que deve valer uma espiada. Afinal, que mal pode haver em julgar um livro pela capa?

:)

Em tempo: outra editora bacana é a Língua Geral. Nem tudo está perdido.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Tradução livre

Um amigo meu, latinista, me contou que no Brasil, do pouco que se traduz de textos clássicos, muito é repetido. Cada um quer deixar a sua tradução da Ilíada ou do raio que o parta. E pouca gente vai para o garimpo.

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Haroldo de Campos, no livro A arte no horizonte do provável, diz que a tradução que Hölderlin fez da Antígona de Sófocles era motivo de riso pra gente como Goethe e Schiller. Schelling (ao que tudo indica) escreveu

Se Sófocles tivesse falado a seus atenienses de maneira tão desgraciosa, emperrada e tão pouco grega, como é pouco alemã esta tradução, seus ouvintes teriam abandonado às carreiras o teatro.


Haroldo mostra que, mais tarde, gente como Benjamin e Brecht diria exatamente o contrário, louvando a tradução de Hölderlin no que ela tinha de poético, independente do que fosse inexato (que era a crítica que lhe faziam, o poeta não saber o grego). E Haroldo cita um outro alemão:

Nossas versões, mesmo as melhores, partem de um princípio falso. Pretendem germanizar o sânscrito, o grego, o inglês, em lugar de sanscritizar o alemão, greicizá-lo, anglizá-lo. Têm muito maior respeito pelos usos de sua própria língua do que pelo espírito da obra estrangeira... O êrro fundamental do tradutor é fixar-se no estágio em que, por acaso, se encontra sua língua, em lugar de submetê-la ao impulso violento que vem da língua estrangeira.


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O próprio Haroldo de Campos escreveu, mais de uma vez, que não se trata de descartar as traduções acadêmicas de conceitos esmerados, mas apenas de entender que a tradução poética trabalha em outros termos, que ele chama de transcriação. Nos passos de Hölderlin, Haroldo propõe que toda tradução poética seja uma recriação do poema original num outro poema, também este original, também ele semente da semântica, tão poema quanto o outro.

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O entusiasmo criativo, não sei se tanto do Haroldo quanto dos díscipulos que vivem por aí exaltando a pérola do poético do Parnaso, é um crivo, no entanto, talvez tão raso quanto o acadêmico.

Penso a partir do livro do Todorov, A literatura em perigo, em que ele escreve:

Uma concepção estreita da literatura, que a desliga do mundo no qual ela vive, impôs-se no ensino, na crítica e mesmo em muitos escritores. O leitor, por sua vez, procura nos livros o que possa dar sentido à existência. E é ele quem tem razão.

E também a partir da afirmação de João Adolfo Hansen. O entrevistador afirma que uma tradução feita por Alberto Mussa de poemas árabes tem "profundas idiossincrasias culturais, de um meio pastoril-arcaico e relações tribal-patriarcais e pensamento mágico-religioso, [que] afinal não se materializam numa linguagem poética que a torne suficientemente interessante para o leitor contemporâneo". Hansen responde:

Quanto ao que me diz sobre sua leitura dos poemas árabes, teríamos que discutir os regimes de historicidade da poesia. Aqui, justamente, acho que está o nó da questão da crítica. Não é possível lê-los considerando a historicidade deles como uma vantagem, não um ônus? Lê-los se despersonalizando num devir-árabe-pastoril-arcaico-mítico-religioso? Por que o presente tem que dar a última palavra sobre o interesse de algo estranho a ele? Porque é o único tempo real que temos?

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A tradução pode, talvez, ser um trabalho nem de atualização poética nem de precisão conceitual. Quem sabe se fosse apenas um ato de estima? É no que estou pensando.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

alheava (3)

um mapa / o conhecimento visual em escala / / / nos antigos mapas da china os monstros marinhos / sendo um mapa a projeção de uma vontade de mundo

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a representação. mundo das ideias, mundo real, deus fez o homem a sua imagem e semelhança / teleologia do táctil.

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aqui abaixo, o óbvio: moçambique deixa de fazer parte do mapa português. o alfinete marcamapas cravado no intervalo de uma ideia. o mundo como seria se / um grande globo de países destacáveis.

se o conhecimento é uma reapresentação.

perceber o óbvio?



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(a chave da representação / acho que a percebo, mas não me parece tão interessante. é porque o óbvio não me interessa.?. / as referências imagéticas são um deserto na nossa cabeça / de dunas móveis, areias / um deserto muito vivo. talvez eu queira mais o fogo do súbito do que esse garimpo da percepção. ou, mais: será que esse movimento assim durado cabe no espaço das frases?)

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delicadeza precisa cuidado

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esta é uma aproximação gradativa do trabalho alheava.

domingo, 25 de outubro de 2009

O que é a poesia?

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A pele perdida

para S.

Quando a menina Isabella Nardoni foi atirada da janela do apartamento pelo pai e pela madrasta, nós nos deliciamos de assunto durante quanto tempo? Entre a queda da menina e a prisão dos assassinos houve todo tipo de manifestação emocional nas casas, nas escolas, nos telejornais e programas de auditório.

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Qualquer caso policial que envolva violência - de preferência sexual - contra crianças merece destaque no site da Folha de São Paulo.

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Assim como a infância é uma categoria de compreensão histórica, quero dizer, não universal nem atemporal, a violência contra a criança também o é. Em um artigo publicado nos Cadernos Pagu, a pesquisadora Tatiana Savoia Landini analisa as notícias publicadas no jornal O Estado de São Paulo com relação a esse tema. Recolhendo reportagens de dois períodos diferentes (o início e o final do século XX), Tatiana identifica uma mudança significativa não só na quantidade e no detalhamento (crescentes) dessas notícias, como também uma mudança do que é considerado crime ou abuso. Vale a pena lê-lo.

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Não acredito que seja eticamente pertinente, em hipótese alguma, a defesa de atos violentos cometidos por causa de uma dissimetria de poder já estabelecida. Assim como não proponho a relativização da dor, de qualquer dor.

E é justamente por isso que me deixa puto da vida a demonização que se faz do pedófilo e a vitimização que se faz da criança, ambos achatados por um senso moral raso que desconsidera a complexidade humana e a especificidade de cada caso, tendo como objetivo exorcizar um mal e não resolver um problema.

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A dor deve ser respeitada. Qualquer que seja essa dor.




Em 1945, tropas aliadas libertam a Holanda da ocupação nazista. Num vilarejo de pescadores, um menino assiste à chegada de um minúsculo exército canadense, responsável por correr dali um contingente alemão ainda menor. No meio desse exército, um soldado chama a atenção do menino - e o soldado, por sua vez, não tira os olhos do garoto.

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Numa cidadezinha do oeste estadunidense, dois meninos entram para um time de beisebol. Um deles, Neil, se torna o melhor jogador do time; o outro, Brian, é um menininho desengonçado e tímido demais para jogar bem. Dez anos depois, Brian continua sendo um rapaz tímido e desengonçado, Neil ainda é o dono da bola e o treinador do time de beisebol sumiu do mapa, deixando apenas rastros.

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For a lost soldier (Holanda, 1992) e Mysterious Skin (EUA, 2005) são filmes que encenam relacionamentos sexuais entre adultos e crianças.

Mysterious skin é um filme narrado sob dois pontos de vistas, um para cada menino. Eles não se conhecem e, aos dezoito anos, a vida leva cada um dos dois a reviver o abuso sexual sofrido na infância. Em duas cenas maravilhosamente sintéticas, cada um dos meninos recebe chuva sobre si.

Brian, sentado no escuro à noite e apavorado, sente os primeiros pingos de água fria. Neil, por sua vez, sorrindo sobre um fundo claro, recebe no rosto rodelinhas de froot loops, aquele cereal colorido.

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Jeroen, o menino de For a lost soldier, fica fascinado pelo soldado bonitão. Aos doze anos, ele sente desejo - cada vez mais difícil de refrear - pelos meninos e homens com quem convive. O soldado mais tarde diria, numa língua que o menino holandês seria incapaz de compreender, que, no momento em que seus olhares se cruzaram ele percebeu que o menino era diferente.

Começa então uma dança de sedução. O soldado, Walt, já tem o repertório corporal da cópula. Jeroen, no entanto, ainda não possui nenhum repertório de canalização do desejo sexual. Esse hiato entre os dois faz com que, à medida que Walt se aproxima fisicamente do menino, Jeroen se afaste fisicamente do homem e depois, encontrando espaço para se movimentar, aproxime-se tateando um ritmo próprio.

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Aos nove anos de idade, Neil já se masturba com frequência e fica fascinado quando vê o treinador do time, que encarna o homem das suas fantasias: alto, forte, de bigode (estamos nos anos 80). A casa do treinador, então, é o sonho de qualquer menino, cheia de doces e videogames.

O treinador faz com que Neil se sinta à vontade, convidando-o várias vezes à sua casa antes de transar com o menino. Aos poucos, ele faz com que Neil se encaixe em uma série de situações de fetiche: grava sua voz, tira fotos, brinca de posições e atividades diferentes.

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Em Mysterious skin, todas as cenas de sexo remetem diretamente a clichês da indústria pornográfica. Quando Neil, mais velho, trabalha como garoto de programa em Nova Iorque, um de seus clientes tira as roupas, se põe de quatro na cama e diz algo como agora fode o meu cu apertado com essa sua rola dura de moleque. O repertório de sacanagem em inglês é infinito e Neil o vivencia desde a infância.

For a lost soldier, por outro lado, se passa nos anos 40, num espaço quase pré-cinema. Anterior, portanto, à proliferação massiva da imagem que vivemos hoje. As experiências, parece, são mais narrativas do que imagéticas. Jeroun e Walt brincam entre si, mas são brincadeiras que não anteveem um resultado. Ao contrário das atividades propostas pelo treinador, que visam atingir determinada composição cênica, como nos livros do Marquês de Sade.

Em For a lost soldier, o que poderia parecer um filme sobre o abuso sexual na infância se transforma, suavemente, numa história de amor. As únicas violências existentes no filme são a violência da guerra, que pelos inusitados caminhos de Eros é o que acaba unindo o casal, e a violência do próprio Amor, que tem o dom de ser tão contrário a si mesmo.

Já em Mysterious skin / não há sombra de amor. Apenas rupturas, coisas rasgadas e deixadas, faltas que ficam. Brian passa o filme inteiro tentando descobrir o que aconteceu com ele quando criança, pois não se lembra de nada e seus pesadelos frequentes parecem apenas desviá-lo dos fatos. Neil se empenha em proliferar o fetiche, mantendo o seu corpo no estado de objeto de prazer em que o treinador o usava.

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Walt retorna ao Canadá junto com as tropas aliadas, deixando o menino Jeroen desolado. No momento em que o filme começa, Jeroen adulto (intepretado por si mesmo, o autor da autobiografia que inspirou o filme) monta um espetáculo de dança em que pretende rememorar essa fase de sua vida. Ele nunca mais soube de Walt.

Um dia, o treinador desaparece. Assim como Walt, ele não se despede. Mysterious skin dá a entender que o treinador é um criminoso em série, tendo talvez partido para outra cidade em busca de outro menino. For a lost soldier dá a entender que o soldado, não podendo mais ficar no país estrangeiro nem se despedir propriamente de Jeroen (pois eles não falam a mesma língua), volta à sua insuportável vida canadense, levando consigo o amor do menino.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O livro das mil e uma noites

As histórias do Livros das Mil e Uma Noites são todas engenhosas. Numa, o ifrit (eu não sabia, mas o gênio também tem um quê de demônio) que o pescador liberta de uma urna lacrada quer matar o pescador. "Mas por quê?!", pergunta o pescador, "se eu te salvei da prisão!". E o ifrit responde:

"Nos primeiros cem anos que eu fiquei preso nessa urna, eu pensava ai eu vou conceder todas as vontades de quem me livrar desta prisão. E nos primeiros cem anos ninguém me livrou da prisão. Nos mil anos seguintes, eu pensava ai eu vou conceder três desejos para quem me livrar desta prisão. E nos mil anos seguintes ninguém me livrou da prisão. Então, cheio de raiva, eu comecei a pensar ai eu vou matar com a pior das mortes quem me livrar desta prisão. Aí você apareceu, pescador, e me salvou. Por isso é absolutamente imperioso que você morra."

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Acontece um monte de coisas, que eu não vou ficar contando agora. O pescador e o ifrit entram num duelo de argumentos mas, no Livro das Mil e Uma Noites, os argumentos são todos narrativos e, para convencer alguém a fazer o que você está pedindo, é necessário contar a história de um vizir invejoso que um dia disse ao rei que.

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As histórias, muito mais numerosas que as noites, vão se fagocitando mutuamente, de modo que os personagens se multiplicam e chega um ponto em que você não reconhece mais um espaço narrativo delimitado, pois tudo se desenrola simultaneamente e as narrativas se cruzam como fios de um tapete louco, múltiplas e desordenadas.

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O filme As Mil e Uma Noites, do Pasolini, é a recriação mais perfeita que pode existir dessa técnica narrativa.

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Uma coisa, no entanto, me motivou a vir escrever aqui. Foi imaginar que essas estorinhas engenhosas que fazem pop-up pelo livro talvez não fossem tão impressionantes se não fosse a unidade que lhes dá Sherazade e seu ofício de adiar a execução à qual o rei quer submetê-la.

O rei, convencido de que é impossível que as mulheres sejam fiéis, resolve casar-se a cada dia com uma moça diferente e mandar matá-la assim que a manhã chegue.

Sherazade, pela contação de histórias que deixam o marido com mais curiosidade do que ódio, se empenha em acabar com a desgraça causada pela decisão do rei.

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As estórias nelas mesmas lembrariam talvez algo como as fábulas de La Fontaine, que têm lá sua delícia, mas se esgotam assim que terminam. Entrecruzadas, no entanto, as narrativas de Sherazade causam microexplosões na ficção e, tão variadas, são como a telenovela que deixa a gente emocionada apreensiva divertida vivendo junto e sem querer que aquilo termine.

É muito bonita essa dimensão narrativa, essa função de dar movimento ao leitor. Ler as noites de Sherazade à noite pode ser um péssimo negócio. No livro, as personagens nunca dormem: Sherazade, sua irmã e o rei ficam até o amanhecer envolvidos pela história. Então levantam-se, vão ao dia e, ao retornarem ao quarto, a história prossegue de onde havia parado.

O sono é uma pequena morte, onde as luzes se apagam e a gente abre espaço pro desconhecido. No Livro das Mil e Uma Noites, tudo o que se faz é adiar a morte pela afirmação da capacidade de inventar. Não é preciso dormir, faz Sherazade, para sonhar. No filme de Pasolini um personagem sorri de alegria ao dizer

A verdade não está num só sonho, mas em muitos sonhos!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

alheava (2)

ainda a falar do trabalho alheava

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Uma das coisas que mais me impressiona é a dosagem do tempo. Não me lembro, agora, de ver nada parecido em literatura. Talvez o Boitempo, do Drummond, três livros publicados durante onze anos / também neles a memória. Mas nunca li nenhum deles com atenção para dizer.

Dez anos é o tempo há que Manuel Santos Maia realiza o seu trabalho.

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O Maia mistura objetos pessoais e públicos num mesmo espaço de afeto / num mesmo espaço de exposição. Onde se reúnem fotos de família, móveis da avó, notas de dinheiro, mapas.






É da história comum de Portugal e Moçambique. Essa miscelânea de registros / na memória não há espaço para avareza. Sobre a memória, Ecléa Bosi escreve num ensaio

Existe, dentro da história cronológica, outra história mais densa de substância memorativa no fluxo do tempo. Aparece com clareza nas biografias; tal como nas paisagens, há marcos no espaço onde os valores se adensam.

(...) A sociedade industrial multiplica horas mortas que apenas suportamos: são os tempos vazios das filas, dos bancos, da burocracia, preenchimento de formulários...

(...) Se a substância memorativa se adensa em algumas passagens, noutras se esgarça com grave prejuízo para a formação da identidade. É grave também nesse processo o ofuscamento perceptivo, ou melhor dizendo, subjetivo, uma vez que afeta o sujeito da percepção.

As coisas aparecem com menos nitidez dada a rapidez e descontinuidade das relações vividas; efeito da alienação, a grande embotadora da cognição, da simples observação do mundo, do conhecimento do outro.

Desse tempo vazio a atenção foge como ave assustada.

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Em alheava, a substância memorativa não se adensa à revelia dos macropoderes com seus trâmites impalpáveis, mas juntamente a eles. Como nos exercícios de matemática coloridos com lápis de cor, os despojos de oficialidade que os governos derrubam sobre a nossa memória são ressignificados e entram nas veias das nossas lembranças de um modo que, talvez, a máscara da alienação não seja capaz de sustentar.

Insisto no afeto.

No afeto, a alienação das horas mortas / das imagens mortas / pode adquirir significados imprevistos.

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(esses posts estão sendo escritos a duras penas e impressões parcamente concatenadas. Eu agradeceria muito alguma ajuda, viu)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

alheava (1)

A memória da dor / é muito do que se diz e que circula por aqui. Bastante gente diz que os quatrocentos anos de escravidão, os quinhentos de matança de índios, os cem de república policial. Que a tortura durante o regime militar de 1964. Que é possível que o trauma / esse íntimo incognoscível e doloroso da psicanálise /que o trauma possa ser coletivo. E o tratamento para o trauma / desejo de Saúde / é o rasgo dos discursos, Pandora abrindo a caixa no divã. Ou nas artes.

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As metáforas hospitalares deixam-nos doentes do passado. Um trauma é encalacrado como tumor. Se coletivo, nós vivemos a metástase.

Caso as metáforas sejam reversíveis / com o projeto alheava, de Manuel Santos Maia, me ocorre pensar que a alegria pode ser uma ação de busca de um presente perdido no passado.

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Qualquer busca implica um movimento. E todo movimento, por ser o oposto da melancolia (desencanto com o passado, medo do futuro, tristeza no presente, ação paralisada), já tem em si um princípio de alegria.





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Já que em 2016 haverá Olimpíadas no Rio de Janeiro, é legal que a gente considere que o Estado-Nação está nos nossos corpos / assim como nos documentos / mas também no nosso afeto. Um dos divertimentos da psicanálise é dissecar o sonho / historiciza os símbolos / e ninguém há de depor contra o materialismo histórico que como prática de pensamento não só é de muita valia contra o despotismo teocrático como é inerente à organização social burguesa que conta os segundos como moedas.

Mas se a gente novamente conseguir retroceder na análise / e tentar entender, antes, o amor dos lápis de colorir.

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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Notas de leitura

"Os grandes textos são os que transformam o modo de ler" - Ricardo Piglia em entrevista publicada no livro O laboratório do escritor.

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É basicamente o argumento de Jorge Luis Borges no texto Kafka e seus precursores. Após citar quatro precursores da escrita e do pensamento de Kafka, Borges observa que esses precursores nada têm a ver entre si além do fato de que, neles, podemos ver traços kafkianos. E Borges conclui: "O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica a nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro".

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Um texto que leva a uma mudança no modo de ler funciona como uma luz muito forte que, após ser encarada fixamente, atordoa a retina e para onde quer que você olhe haverá cores e estrelas que não estavam lá antes.

A diferença é que, com a leitura, os danos à vista costumam ser permanentes.

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É também o Borges quem menciona que, por estar tão espalhado e presente pelo mundo, o Livro das Mil e Uma Noites já é "parte prévia da nossa memória". Essa afirmação é particularmente interessante por dizer "nossa memória".

A gente pode dizer que vivemos num mundo kafkiano, se na nossa retina estiverem as cores de Kafka. Assim como as Mil e Umas Noites estão na memória daqueles que as viram, ainda que pelos olhos de outros, mesmo que esses outros não as tenham visto, mas ouvido de outros que também podem não ter visto etc.

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Para mim, o fato de o Brasil ter pressuposto a escravidão por quatrocentos anos faz com que, boa parte do tempo, eu pressuponha a escravidão agora em 2009. A escravidão, como fato histórico, é precursora do meu presente não apenas na cronologia, mas cognitivamente.

Posso dizer que 170 milhões de pessoas compartilham o meu passado cronógico, mas quantas pessoas compartilham desse pressuposto fenomenológico?

(Esse foi um exemplo, não estou emitindo juízo de valor)

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O nosso discurso sobre o passado é uma opção por uma concatenação narrativa de fatos eleitos. E é um discurso invariavelmente do agora.

O sol é do tamanho do meu pé.

Assim como a leitura é sempre uma leitura-agora. A leitura é como uma reação química, que só acontece na duração de contato entre dois elementos num determinado ambiente.

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Mas o presente, assim como o passado, não é monolítico. É amorfo e poroso.

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Ler Borges após ter ouvido Diana me deixa muito menos crente no Borges. E ouvir Diana tendo lido Borges faz com que eu ouça com mais prazer as músicas de Diana. No caso, não importa quem veio antes e quem veio depois. Estando os dois no meu passado, estão ambos no meu presente.

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O "grande texto" é uma experiência pessoal ou coletiva?

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Ao ler Kafka, Kafka é um precursor de Kafka.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Dinheiro

para o Belo

É certo que nós podemos significar as coisas que vivemos de jeitos distintos e pessoais. Por exemplo, um tropeção pode ser seguido de risos ou de impropérios. Ainda assim será um tropeção e, se nos levar o tampão do dedo do pé, nos terá levado o tampão do dedo do pé independente da nossa reação a isso.

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Carolina Maria de Jesus escrevia passando fome. É uma personalidade admirável, essa que desmaia por falta de alimento (não acidentalmente, mas como um fato contínuo do cotidiano) e que escreve sobre isso. Ela escrevia seu diário muitas vezes à noite, em cadernos velhos e com luz fraca, passando frio e fome dentro de um barraco de madeira, e essa era sua vida.

Mas Carolina não encarnava a missão do poeta marginalizado, sem lugar na sociedade de consumo, pária da burguesia e etc. Passa longe de seu diário qualquer ímpeto redentor. Carolina apenas deu de ser pobre, preta e mulher num país e numa cidade (São Paulo) em que ser pobre, preta e mulher basta para ser maltratada por qualquer um que se sinta no direito de. Seu livro Quarto de despejo é cheio de raiva, mas também de generosidade e, sobretudo, de atenção. O valor da escrita de Carolina não está no divertimento quase circense, para nós de barriga cheia, de vermos a miséria; está na força de apreensão da palavra. Pois que a poesia se escreve com o sangue da experiência, é esse que inunda o livro de Carolina.

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Estou absolutamente convicto (embora sempre disposto a mudar de ideia) de que as condições materiais de produção de um texto determinam o alcance e o limite desse texto. Não se trata de justificar a poesia pela classe social ou pela psicologia do poeta, mas de não, de modo algum, reduzir a experiência do poema a critérios de leitura fixos e circunscritos. Em outras palavras, também não se trata de justificar a poesia pela classe social ou pela psicologia do leitor.

Clarice Lispector, em A hora da estrela, também escreveu a fome. E, para demarcar que a sua própria experiência excluía invariavelmente a fome da personagem Macabéa, Clarice chegou ao extremo de forjar um autor, Rodrigo S.M., que passa o livro inteiro falando sobre como ele e Macabéa são em tudo diferentes e como, escrevendo sobre ela, lhe é impossível ter a experiência que ela tem. Em A hora da estrela, nem Macabéa nem Rodrigo S.M. são personagem principal: quem é é a diferença entre os dois, é a dor inalienável e que, contudo, não se admite mais dolorida do que qualquer outra dor.

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Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

(Drummond, trecho de "A flor e a náusea", em A rosa do povo)

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A escrita, então, acontece nesse abismo da experiência, extremamente solitária e, justamente nisso, compartilhável (acho que estou discordando do que disse no meu último texto). Cito mais um exemplo, que é o de Simone Weil. Formada em Filosofia, filha de uma família culta e bem de vida, Simone Weil tinha desde cedo as inclinações humanitárias típicas de uma intelectual de esquerda com influências anarquistas. Nós, que defendemos a paz no mundo e lemos O pequeno príncipe, sabemos bem o que é isso.

Pujante, portanto, é ler seus diários da época em que trabalhou, como operária, em uma fábrica. Weil buscava o despojamento quase mártir de tudo o que não fosse compartilhado e compartilhável com os operários, então a classe marginalizada da França. Nisso incluem-se iniciativas de ensino de literatura grega (já que sua profissão era a de professora) dentro das fábricas.

Mas nesses diários que citei, a intelectual de constituição frágil e desacostumada ao trabalho braçal, que se propôs justamente a teorizar sobre a vida do proletariado a partir da experiência do seu cotidiano, praticamente não consegue teorizar. Há dias em que lemos uma justificativa triste de não ter podido escrever por um longo período, graças às dores fortes de cabeça que sentia. Outras vezes, o que ela faz é desenhar as engrenagens das máquinas, explicando como elas funcionam, mostrando que o contato com a máquina era mais imediato do que a reflexão intelectualizada desse contato.

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Falar nas condições materiais da escrita significa admitir que toda escrita é um ato corporal. Falta admitir que toda leitura também seja.

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Dinheiro

Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune, adoré; on a consideration, honneur, qualité, virtus. Quand on n'a point argent, on est dans la dependance de toutes choses et de tout le monde.

Chateubriand

Sem ele não há cova - quem enterra
Assim grátis, a Deo? O batizado
Também custa dinheiro. Quem namora
Sem pagar as pratinha ao Mercúrio?
Demais, as Dânaes também o adoram...
Quem imprime seus versos, quem passeia,
Quem sobe a Deputado, até Ministro,
Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte,
Alma Romana, se não tem dinheiro?
Fora a canalha de vazios bolsos!
O mundo é para todos... Certamente
Assim o disse Deus mas esse texto
Explica-se melhor e doutro modo...
Houve um erro de imprensa no Evangelho:
O mundo é um festim, concordo nisso,
Mas não entra ninguém sem ter as louras.

(Álvares de Azevedo, em Lira dos vinte anos)
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